27 julho 2012

STF E O MENSALÃO


Desatemos o nó





Por Mino Carta, na Revista CartaCapital


Wálter Fanganiello Maierovitch critica a ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, por ter dito que com o processo do chamado “mensalão” a Nação julgará o próprio Supremo. Segundo o nosso colunista, quem será julgado é o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que denunciou os acusados de participar do esquema criminoso. Procedente ou não a denúncia? Eis a questão.
O fato de que Gurgel mereça a precedência no julgamento da opinião pública não invalida a ideia da senhora Calmon, na qual sinto a constatação em lugar da pressão. Não é que o STF faça jus à confiança coral do povo brasileiro. Nem sempre foi impecável na atuação, pelo contrário. Sem contar os passos em falso dados por este ou aquele ministro. Primeiro entre eles, dentro das composições mais recentes, Gilmar Mendes.

Ayres Britto. Confiamos na batuta do maestro. Foto:Carlos Humberto/SCO/STF

Autoritário até a truculência, Mendes é aquele que chamou às falas o presidente Lula. E denunciou ser vítima do grampo, executado pelos agentes da Abin, de suas conversas com o amigão Demóstenes Torres, escuta que nunca houve e, mesmo assim, resultou no desterro para Portugal do chefe da agência, o honrado delegado Paulo Lacerda, melhor diretor da Polícia Federal das últimas décadas.
Mendes é sócio de um instituto de ensino, a contrariar a Lei Orgânica da Magistratura, que exige dedicação exclusiva, e não hesitou em convocar, na qualidade de professores, colegas do Supremo. Por exemplo, Eros Grau quando ministro. Tertúlias de felizes e pontuais consumidores de pizza, convictos de sua impunidade. Mendes é também acusador de Lula ex-presidente, apontado, um mês depois dos eventos alegados, como autor de pressões para influenciar seu voto no processo do “mensalão”. Foi desmentido inexoravelmente pelo próprio ex-ministro Nelson Jobim, anfitrião do encontro com Lula.
Na reportagem de capa desta edição, Mendes volta à ribalta, e por causa de circunstâncias destinadas a esclarecer de forma decisiva as razões do seu voto contrário ao envolvimento do ex-governador Eduardo Azeredo no “mensalão” das Alterosas. A suspeição de Mendes no processo que se inicia é muito mais que evidente. Talvez não seja o único ministro que a justifica. Veremos o que veremos. De saída, CartaCapital declara confiar na batuta do presidente do STF, Ayres Britto, figura de todo respeito.
Que o nó seja desatado, e não pela espada de Alexandre, o macedônio, é da conveniência da Nação em peso, inescapável juiz dos comportamentos do Supremo diante de uma questão tão crucial na perspectiva do futuro do País, emergente superdotado e até hoje cerceado pelos herdeiros da casa-grande, elite (elite?) prepotente e hipócrita, feroz e covarde. Não é por acaso que o Brasil contou com torturadores eméritos, capatazes e jagunços imbatíveis nos seus misteres. E até hoje é incapaz de negar, pela força da Justiça, a validade de uma lei da anistia imposta pela ditadura civil-militar.
CartaCapital sempre entendeu que o “mensalão”, com o significado de mesada do suborno, nunca foi provado, embora houvesse evidências de outros crimes, igualmente graves. Espera agora por um julgamento digno da Suprema Corte de um país democrático e civilizado, sem excluir de pronto possibilidade alguma.
De sorte a cumprirmos dignamente o compromisso com o jornalismo honesto, ancorado na verdade dos fatos, a partir desta edição passamos a publicar a contribuição de um grupo de professores de Direito da PUC de São Paulo, análise estritamente técnica das condições iniciais e dos desenvolvimentos do processo. Trata-se de um trabalho que alia profundidade à isenção, e que prosseguirá ao longo de toda a demanda. CartaCapital faz questão de diferenciar-se de quem se antecipa à sentença final na impafiosa certeza de ter já identificado executores e mandantes. Esperamos, apenas, que se faça justiça, a bem do Brasil.



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O STF agirá como corte criminal, e não ‘política’






por Pedro Estevam Serrano*

Uma questão que tem ocupado espaços nobres de debate na mídia é a de que se deve o chamado caso do mensalão ter um julgamento técnico-jurídico ou político.
Processos contra os 40 réus do chamado mensalão. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
A rigor o tema é ao menos parcialmente vazio de sentido. A jurisdição como função constitucional do Estado é uma função sempre política, pois trata-se de uma das atividades fundamentais  que se realizam pela possibilidade do uso legitimo da violência para fazer valer suas determinações.
Por outro lado, essas mesmas determinações são produzidas por seus agentes, os magistrados, não com fundamento em sua vontade autônoma, mas sim com fulcro na vontade heterônoma da lei, como forma de solução definitiva de conflitos de interesse, e neste aspecto são técnico-jurídicas por excelência, ou seja, o poder político é exercido através e submisso ao direito e não ao largo dele. É assim que funciona o chamado Estado de Direito.

Mas a expressão “político” não tem sido usada por alguns formadores de opinião nesse sentido que expressei acima. Em essência, argumentam que como o julgamento do “mensalão” será realizado pelo STF e este é uma corte constitucional, e não um tribunal comum, tal julgamento deve se dar com a busca de um equilíbrio entre o juízo que emana do processo e a satisfação da chamada opinião pública, pois, segundo esse entender, as cortes constitucionais atuam com uma esfera de agir autônomo maior que a dos juízes comuns na interpretação da lei. Este o sentido da expressão “julgamento político” que parcela da mídia quer ver realizado no caso do “mensalão”.
Tal opinião expressa um efetivo desconhecimento das competências constitucionais e da natureza jurídica-institucional de nossa Suprema Corte.
De forma sintética, nos limites que possibilita um texto jornalístico, podemos afirmar, grosso modo, que dois modelos de jurisdição constitucional foram conformados no primeiro mundo desde o surgimento do Estado Constitucional de Direito.
A jurisprudência norte-americana, a partir do clássico Caso Marbury vs. Madison, construiu seu sistema de controle de constitucionalidade pelo chamado judicial review, ou seja, a constitucionalidade das leis é controlada pelo exercício corrente da atividade judicial comum. A partir de casos concretos de conflitos entre pessoas, as leis podem ser declaradas inconstitucionais.
Como há naquele país a figura jurídica do precedente, que obriga os órgãos judiciais a adotar as decisões anteriores de tribunais superiores em casos semelhantes, a decisão da Suprema Corte que declara inconstitucional uma lei num caso concreto acaba tendo efeito para toda a sociedade.
Já na Europa continental a forma historicamente construída de controle de constitucionalidade das leis foi outra, iniciando-se na Constituição Austríaca de 1920, aperfeiçoada por emenda de 1929, por inspiração de um dos maiores juristas do direito contemporâneo, Hans Kelsen, e influenciada certamente pelo fato de inexistir nos sistemas jurídicos da Europa continental a figura jurídica do precedente com vinculação de decisões futuras.
No sistema europeu, o controle de constitucionalidade, com as eventuais peculiaridades de cada país, é feito de forma concentrada por um órgão distinto do Poder Judiciário, chamado normalmente de Corte Constitucional, ou seja, as leis tidas como inconstitucionais têm seu controle realizado em abstrato, sem estar relacionado ao julgamento de um caso judicial concreto, por um órgão não integrante da estrutura do Poder Judiciário.
Na concepção de Kelsen, as cortes constitucionais teriam assim um papel de legislador negativo mais que de juízes, revogando leis tidas como inconstitucionais.
Daí surgem as concepções doutrinárias, mal compreendidas por parcela de nossa mídia, que atribuem à jurisdição constitucional um caráter mais político do que técnico-jurídico, a partir da visão que as normas constitucionais seriam dotadas de uma inafastável amplitude e vaguidade semântica que exige de seu aplicador mais que uma mera interpretação técnica, aproximando-a mais da atividade política do legislador que daquela do juiz comum.
Divergimos desse ponto de vista que vê tamanho poder do aplicador da norma constitucional na formulação de seu sentido, por entendê-lo superado no atual momento do pensamento jurídico, mas a questão da natureza constitucional do julgamento do mensalão não exige ingressar neste debate para ser deslindada.
Nossa Constituição adotou um modelo híbrido de controle de constitucionalidade entre os sistemas norte-americano e europeu, podendo ser realizado tanto de forma abstrata quanto no julgamento de casos concretos.
E mais: nosso STF, embora realize o controle abstrato de constitucionalidade, é órgão integrante do Poder Judiciário, possuindo além das atribuições de corte constitucional uma série de competências próprias de uma corte judicial comum, como o julgamento de recursos extraordinários em processos comuns, de mandados de segurança contra algumas autoridades federais, o julgamento de alguns processos crimes etc.
O STF não é uma corte constitucional apenas, pois exerce mais funções que o controle de constitucionalidade.
E aí o grande equívoco manifestado em editoriais e artigos de parte de nossa mídia. Ao julgar o caso do mensalão, o STF não estará atuando como corte constitucional, não estará realizando qualquer forma de controle de constitucionalidade, mas sim atuando como uma corte criminal comum, conforme a alínea “b” do artigo 102 de nossa Constituição.
Atuará como órgão de aplicação da ordem jurídica penal, nem se cogitando de exercer o papel supostamente “político” que parcela de nossa doutrina enxerga nas cortes constitucionais.
Das áreas do Direito em que atua nossa Jurisdição, certamente a criminal é a que o magistrado ou a corte julgadora mais deve ter sua decisão amalgamada às provas do processo, ao ponto de em havendo dúvida razoável quanto à autoria ou a materialidade do delito, o réu deve ser julgado inocente. É a chamada presunção de inocência.
A lei penal é, sem duvida, a que menos permite ao intérprete construções subjetivas autônomas em sua interpretação, pois, por ditame constitucional as normas penais devem ser interpretadas restritivamente, salvo quando em benefício do réu.
Querer que o magistrado leve em conta uma chamada opinião pública, que em verdade é a opinião publicada, numa decisão de processo-crime, como forma de mitigar o valor das provas constituídas no processo, mais que uma ofensa a direitos fundamentais dos acusados, é um inequívoco atentado aos valores e princípios mais comezinhos de um Estado Democrático de Direito. Trata-se de querer transformar o julgamento em linchamento.
Cabe, sim, a uma mídia democrática fiscalizar se o STF na fundamentação de sua decisão a realizará segundo as provas do processo e de acordo com nossa ordem jurídica e não procurar substituir a magistratura no exercício de suas funções.

*é advogado, colunista do site de CartaCapital e professor da Faculdade de Direito da PUC-SP



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