28 setembro 2012

POLÍTICA



DEBATE ABERTO

Uma ética social ameaçada por uma moral individualista

Os setores dominantes e a mídia a seu serviço tratam, pelas denúncias moralistas, de evitar que resultados eleitorais revejam a representatividade da força hegemônica do capital. O teste eleitoral próximo poderia servir para ver se o teatro montado em torno ao mensalão será ou não levado em conta por uma parte importante da população.

Há uma enorme polissemia quando se trata de definir ética e política, variando dos gregos ao pensamento medieval, de Espinosa e Kant aos existencialistas; também nas diferentes crenças ao largo da história têm leituras próprias. Por isso, por rigor argumentativo, é preciso começar por explicitar o que se entende por cada uma delas. Constroem-se definições operacionais práticas, que não impedem outras definições possíveis.
Por moral, entendo aqui as normas que regulam o comportamento dos seres humanos em sociedade. Ela sempre existiu, de diferentes maneiras, nas diversas culturas pelo mundo afora e normalmente expressa, nem sempre coerentemente, um imperativo de procurar fazer o bem e evitar o mal. Tem uma forte conotação individual.

Por ética, temos o conjunto de valores (ou contravalores) que orienta, numa determinada realidade, o comportamento social em relação à vida em sociedade, para a manutenção ou para a transformação desta. Ela vai moldar a presença na polis. Por isso a ética está intimamente ligada à política, como foi indicado desde os gregos. Num texto de 1992, Betinho escreveu: “política e ética andam sempre juntas. A questão sempre é de saber para onde e para o bem de quem”. Traz uma direção teleológica, isto é, orientada aos fins.

Sendo a política o exercício visando a coletividade – repito, para mantê-la ou transformá-la –, ela concretiza os valores (ou contravalores) da ética num processo histórico e espacial determinado. Se a ética não se encarnasse numa política, permaneceria como princípios abstratos socialmente irrelevantes. Ora, a política é a arte de gerir a sociedade num processo normalmente longo, complexo e contraditório. Então, a ética vive essa contradição e essa imersão no real, na tensão existencialmente dramática entre o possível e o desejável. Rompendo-se a tensão numa decisão unilateral que opta pelo possível, temos a redução conservadora da direita (ou de um certo pós-modernismo), onde a ética se dissolve. Do outro lado, expressar apenas o desejável, fora do processo contingente, seria cair num mundo dos ideais sem corpo.

Há uma esquerda radical que, em nome de um projeto ideal, nega valor ao processo político concreto, inevitavelmente complexo e contraditório, refugiando-se numa proposta ético-política sem raízes. Mesmo dizendo-se muitas vezes marxista, não segue as lições do mestre, que indicava a necessidade de subir do abstrato das intenções para o concreto das opções e das ações. Esses dois extremos da cadeia simplificadora se tocam, uns petrificados num real avesso às mudanças, outros refugiados num idealismo que não consegue questionar a realidade contingente.

A ética, num comportamento social, deveria estar dirigida para o que o tradicional pensamento social cristão chama de bem comum que, no dizer de Jacques Maritain, não é uma simples coleção ou somatória justaposta de bens individuais, porém tem uma consistência essencialmente societária. Mas frequentemente esta ideia de bem comum, quando desligada dos mecanismos reais de dominação e de desigualdade das estruturas, na verdade se encolhe num bem parcial de uns poucos privilegiados. A única maneira de universalizar de fato o chamado bem comum será de colocá-lo no embate concreto na sociedade onde, para usar expressões de Gramsci, as necessidades dos setores subalternos se contrapõem aos privilégios dos setores dominantes. E aí a ética terá muito a dizer, para desocultar, denunciar e propor.

A moral, tal como definida acima, vai julgar os comportamentos individuais neles mesmos. Ela se aproxima da ética social reduzida ao possível e com ela pode se confundir. Nem uma nem outra questionam a sociedade em sua heterogeneidade estrutural das desigualdades. Um bom exemplo disso é a luta contra a corrupção. Não se nega sua importância – nem da chamada lei da ficha limpa – desde que integrada num contexto ético de opções políticas. Isolada, pode ser um sutil álibi para evitar entrar no debate político da crítica à realidade tal qual existe. Bastaria penalizar alguns corruptores, ativos ou passivos, e muitos setores ficariam em paz com sua consciência, sem questionar os fundamentos básicos da sociedade em que vivem. Temos aí o moralismo, que é a redução da ação política a essa moral individualista, que mascara e oculta a trama desigual da realidade social.

Vejamos como o moralismo foi se manifestando no Brasil, expressado basicamente pelos mesmos setores em diferentes momentos da história contemporânea. No começo dos anos 50, governo Vargas, num processo de construção da nação (do qual o “nosso petróleo é nosso” foi um símbolo), Carlos Lacerda e a chamada banda-de-música da UDN (constituída por parlamentares bacharéis de boa oratória), destilavam sua raiva azeda. Denunciavam desde um empréstimo menor do Banco do Brasil ao periódico Última Hora (que cometera o crime de não se alinhar com a mídia dominante), passando pelo balcão de favores miúdos de humildes e obtusos seguranças do presidente, para chegar à denúncia estrepitosa de “um mar de lama” nos porões do regime. Tudo isso encaminharia lideranças militares a propor o afastamento de Vargas, levando este ao gesto último de um suicídio denunciador. Lembremos como isso abalou os setores populares do país, levando Lacerda, apodado de “o corvo do Lavradio”, a esconder-se para fugir da ira popular.

Depois tivemos o histriônico Jânio, com sua vassoura, eleito presidente com o apoio dos mesmos setores lacerdistas, mais interessado numa moral caricata de proibir os biquínis e as rinhas de galos do que de enfrentar os problemas éticos reais do país. Nesse caso, um provável estado etílico o levou a renunciar. Anos depois, tivemos o apoio desses mesmos setores ao golpe militar de 64, insistindo no tema da corrupção, agora somado ao da subversão, para evitar projetos de “reformas de base”, ameaçadores de privilégios fundiários ou exigindo acesso ao trabalho e uma tributação menos injusta. Mais tarde veio o Collor da luta contra os marajás, os quais não eram vistos como um setor dominante, mas como pessoas que se enriqueciam indevidamente. Descoberto ele mesmo como sendo um deles, desta vez veio o impeachment. Boa parte do eleitorado que apoiou esses políticos e apoiou o golpe, era constituída por setores das classes médias urbanas pouco sensíveis às injustiças estruturais, guiada pela grande imprensa sua aliada e mentora.

Vamos descobrindo assim uma opção de priorizar a denúncia dos deslizes morais individuais, a fim de ocultar o grande escândalo ético de um país das desigualdades. Uma elite atrasada e voraz, com seus meios de comunicação, envolve esses setores médios – transformando-se em seu “intelectual orgânico” -, para evitar a indignação diante dos crimes dirigidos contra os pobres, marginalizados do bem comum. Ao tocar nesse último ponto vem logo, por parte de seus teóricos, a denúncia de populismo de quem os assinala, Getúlio, Jango, Brizola, Lula e agora Dilma.

No caso concreto do Brasil, soma-se a isso um preconceito dos que não conseguem suportar a liderança de um operário que não surgiu dos círculos habituais do poder. Como disse Luís Fernando Veríssimo, um simples da Silva ocupou o lugar destinado aos Bragança.

Chegando aos dias de hoje, há uma coincidência pelo menos suspeita entre os prazos do julgamento do chamado mensalão e o final do período eleitoral. Merval Pereira, epígono menor do velho lacerdismo, já abriu o jogo e assinalou com avidez incontida, a simultaneidade da possível condenação de políticos do PT, com os dias que antecederão às eleições. As punições, para ele, deveriam ter um impacto imediato nos resultados eleitorais. Mais do que isso, a sociedade seria levada a crer que, resolvendo essas tensões morais individuais, esqueceria e passava ao largo das exigências de uma ética social já aplicada nas políticas sociais do governo, hoje integrando milhões de brasileiros à produção, ao consumo e à participação cidadã. A mídia, deformando o processo no STF, foi desenhando a caricatura teatral do que seria para ela “o maior acontecimento da história do país”! E vai se fazendo de um relator- aliás nomeado por Lula, como vários outros ministros, com critérios jurídicos e não de clientela -, uma espécie de anjo exterminador, ainda que provavelmente não seja essa sua intencionalidade pessoal. Mas, já com um futuro político garantido, o elevam como herói da classe media moralista e, de forma bastante compreensível, também de uma ultra-esquerda principista. Duas vertentes que, no Rio, se unem no apoio a Freixo do PSOL, embaçando um itinerário pessoal anterior de coragem moral e de denúncia ética.

Não podemos esquecer que o chamado valerioduto foi construído a partir de 1998 com o PSDB de Minas Gerais, na campanha de Eduardo Azeredo, assim como antes tivéramos a privataria escandalosa dos tempos de FHC. Mas as denúncias de agora, com a revista Veja à frente de um cartel na mídia, são seletivas e tantas vezes irresponsáveis e falsas. Elas mais escondem do que desocultam. Como lembrou numa brilhante intervenção no parlamento o senador Jorge Viana, os dois últimos governos deram um crédito de confiança à Polícia Federal como órgão investigador e colaboraram para que o Supremo e o STJ ficassem cada vez mais independentes. Se hoje aparecem à luz do dia os malfeitos, é porque o aparelho do estado tem mais liberdade e independência, o que fortalece o processo democrático. Mas o mesmo senador alerta que, como anos atrás, também num momento pré-eleitoral das primeiras denúncias, há no ar uma intenção anti-democrática oculta de sonhar com um golpe branco, para sustar o processo de avanços sociais e para destruir um Lula intolerável por sua grande aceitação popular.

Em 2005, no começo da apresentação em conta-gotas dos escândalos pela mídia, numa tática de desgaste gradual, o PT não soube reconhecer com coragem seus erros e deformações internas. Foi quando seu presidente interino, Tarso Genro, lançou a ideia certeira e lúcida de “refundar o partido” e rever a fundo costumes e ações. Não se elegeu como presidente nas eleições internas seguintes. O PT perdeu ali uma grande oportunidade histórica, pela resistência de um núcleo duro que fora entrando na lógica costumeira dos outros partidos. Não esqueçamos que membros do PT resvalaram para velhos hábitos das forças políticas, alguns como aprendizes amadores mirins, como o secretário-geral acusado de receber um mísero Land Rover. Outros possivelmente não se desvencilharam de um passado aparelhista, de uma velha esquerda que quer permanecer no poder a todo custo.

Porém as velhas raposas, profissionais nessa área, chamem-se Sarney ou ontem ACM, faziam pior mas não deixavam rastos. Já Maluf, com total cinismo, nem se dá o trabalho de ocultar seus atos. Há uma indicação inquietante que vem do Maranhão. Jackson Lago, que conquistou o título de melhor prefeito do país, foi eleito governador em 2006, numa virada surpreendente, terminando com quarenta anos de coronelismo dos Sarney.

Com apenas cinco meses de governo, foi acusado de corrupção envolvendo familiares. Em 2009, o TSE anulou os votos de Jackson, o que permitiu a posse de Roseana Sarney, segunda colocada, que sempre conseguiu habilmente esquivar-se de acusações que pairavam sobre ela, a não ser no momento de um vale-tudo dentro da própria oposição, na luta por uma candidatura à presidência que poderia fechar o caminho para Serra.

Isso leva à necessidade de rever as políticas de alianças aéticas e esdrúxulas que, em nome de uma possível governabilidade e a alto preço, apenas servem para reforçar o clamor moralista. Melhor seria o governo dirigir-se às forças vivas do tecido social, especialmente movimentos sociais, como verdadeiros aliados e grupos de pressão da sociedade.

Aqui vemos, como em tantos países, a crise de legitimidade de boa parte dos partidos, que não se pode confundir com crise da democracia. Saindo de vinte anos de governo militar temos de ser muito cautelosos a respeito.

Há que apelar para a sociedade, como sujeito primeiro da participação política. Com ela se poderia superar a pouca confiabilidade de uma representação nas mãos de bancadas conservadoras, como a dos ruralistas, que se elegem pelo poder do dinheiro. Ainda que pareça difícil, as eleições vindouras deveriam ser o momento de uma profilaxia da política. Por isso, os setores dominantes e a mídia a seu serviço tratam, pelas denúncias moralistas, de evitar que resultados eleitorais revejam a representatividade da força hegemônica do capital. O teste eleitoral próximo poderia servir para ver se o teatro montado em torno ao mensalão será ou não levado em conta por uma parte importante da população. Esta sente claramente no seu cotidiano um processo de mudanças, talvez não com a celeridade desejável, mas que vem enfrentando, aos poucos, os marcos estruturais da dominação secular das elites. Aqui a política, a partir de uma ética social transformadora, poderia superar as resistências poderosas de uma moral individualista e farisaica dos donos do poder real na sociedade.




Luiz Alberto Gómez de Sousa, sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes.

Fonte: www.cartamaior.com.br 


O "PARAÍSO" AMERICANO


A supremacia das finanças: uma usina de pobres




Saul Leblon, no Blog das Frases



Existe um traço comum entre a rastejante recuperação norte-americana sob a batuta de Obama, a etapa aguda da crise que a antecedeu -- capitaneada por Bush Jr-- e, antes ainda, o período de apogeu que originou tudo, composto pelo desmonte regulatório nas mãos de Reagan (1981-1989), seguido da consolidação rentista, sob a batuta do democrata amigo de FHC, Bill Clinton (1993-2001).

O fio que interliga o enredo é a persistente disseminação da pobreza na maior potencia capitalista da terra, antes, durante e depois do colapso de 2008.

A caminho do quinto ano, a crise mantém os pobres no limbo dos renegados; ao contrário do que se viu nos anos 30, subordina seu resgate à salvação das finanças, como criticou a Presidenta Dilma Rousseff, na ONU, nesta 3ª feira.

A prioridade ortodoxa justifica jogar novas cargas ao mar e ofusca a questão política central dos dias que correm: turbinado organicamente pelas finanças, o capitalismo atravessou o Rubicão despindo-se de qualquer compromisso com o presente e o futuro da sociedade; nos EUA, bem antes da crise, em pleno ciclo de expansão dos lucros e da produtividade, a engrenagem passou a cuspir regressividade e pobreza, gerando uma massa crescente de renegados. A esses, como sentenciou Mitt Romney, o mercado não tem o que dizer.

Os salários da força de trabalho nos EUA encontram-se em queda ou estagnados, desde 1999. No ano passado a renda média caiu em 18 estados, segundo o censo de 2011, divulgado agora em setembro; no anterior havia recuado em 35 das 50 unidades da federação.

Na ensolarada Califórnia, 335,7 mil pessoas atravessaram a linha pobreza em 2011, elevando o contingente de pobres do estado a 16,6% do total.

Desde 2000, a classe média americana dotada de diploma universitário, não tem reajuste salarial.

Não é um privilégio local. Também na Europa, um número crescente de famílias da chamada classe média vive o pior cenário de aperto financeiro desde a II Grande Guerra. Sem a perspectiva de um novo 'Plano Marshall', começam a afluir em direção aos parlamentos para exigir soberania popular, contra a agenda conservadora que renega os pobres para salvar os bancos.

Relatório recente da OCDE, não propriamente uma trincheira progressista — sugestivamente intitulado “Divididos estamos: porque aumenta a desigualdade--, indica que “a renda média de 10% das pessoas mais ricas equivale a nove vezes a renda dos 10% mais pobres” (nos países que integram a organização).

Nos EUA, quase 47 milhões de norte-americanos dependem do Food Stamps para comer. Em termos absolutos, é o maior contingente desde que o Census Bureau começou a elaborar as estatísticas, há 52 anos.

São as entranhas da 'turma dos 47%' pela qual Mitt Romney manifestou um rotundo descompromisso em recente jantar de arrecadação de fundos. "São pessoas', avaliou o magnata que paga 14% de imposto, contra média superior a 20% dos assalariados,"que dependem do governo, que acreditam que são vítimas, que acreditam que o governo tem a responsabilidade de cuidar delas, que acreditam que tem direito à saúde, a comida, à moradia.Que isso é um direito. E que o governo (o Estado) deveria dar isso a elas".

O ocaso dos deserdados norte-americanos não decorre apenas da peculiar visão de sociedade dos republicanos. Fosse assim, seu contingente não persistiria em alta após quatro anos de Obama e, sobretudo, sua arrancada vigorosa não seria anterior à própria crise.

O desmanche que gerou os deserdados de Romney decolou durante o reinado conservador de Ronald Wilson Reagan; propagou-se no festejado período de Bill Clinton na Casa Branca e assumiu contornos variados que esticaram a linha da exclusão até os nossos dia. Declínio do emprego, precarização do trabalho, queda dos salários reais, aumento da desigualdade, ampliação da jornada, perda de direitos e regressão sindical formam a trama dessa travessia.

É esse desmonte sólido e contínuo que emerge do estudo ' The State of Working America', uma radiografia da situação da classe trabalhadora nos EUA, publicada agora pelo Economic Policy Institute’s (http://stateofworkingamerica.org/).

A análise reúne evidencias de uma deriva social decorrente da mudança estrutural nas relações de trabalho, cuja dinâmica antecedente alinha-se muito mais entre as causas da crise, do que entre as suas consequências, ainda que faça parte delas também.

O conjunto desautoriza ilusões de retorno a uma zona de conforto que não existe mais e enfraquece a aposta política de quem continua a insistir numa solução incremental, dentro das mesmas regras do jogo. Uma parte apreciável da esquerda encontra-se congelada nesse botijão de nitrogênio histórico.

Se foi a pobreza que gerou a crise e não o seu inverso, cabe ir além das aparências na formulação de um programa que responda ao cerne do impasse --tarefa da qual Mitt Romney, compreensivelmente, se esquiva.

Os dados da edição de 2011 do " The State of Working America" cobrem a gênese do esfarelamento do trabalho no capitalismo americano. A comparação entre os anos 80, a década de 90 e o limbo atual corrobora idéia de que esta não é uma crise como outra qualquer, mas sim, um ponto de mutação do capitalismo. Razão pela qual exige mais do que esparadrapos para ser superada, como mostram os dados abaixo:

1) os ganhos salariais significativos dos anos 80 sofreram forte desgaste na década de 90;

2) o valor da hora trabalho estagnou ou caiu para 60% dos trabalhadores;

3) em 1996 a renda média familiar já era inferior a de 1986 (uma corrosão persistente);

4) uma família típica assalariada trabalhou 247 horas adicionais em 1996 para obter a mesma renda de 1989, apesar do crescimento de 8% da produtividade no período;

5) o emprego estável esfarelou; a fatia dos trabalhadores com cerca de 10 anos no mesmo emprego caiu de 41% em 1979 para 35,4% em 1996 (e certamente embicou nos anos mais recentes);

6) a desigualdade se acentuou: a renda de uma família de classe média padrão encolheu 3% entre 1989 e 1997, apesar da borbulhante expansão dos investimentos especulativos; em compensação 10% dos lares abocanharam 85% dos ganhos propiciados pela festa financeira;

7) a explosão de rentabilidade das corporações se fez, em parte, em detrimento do ganho das famílias assalariadas; se o grau de exploração tivesse se mantido dentro do padrão médio, a remuneração dos trabalhadores poderia ter ficado 7% acima do que foi;

8) a organização sindical dos trabalhadores regrediu drasticamente: de 1973 a 2011, a fatia da força de trabalho filiada a uniões e sindicatos recuou de 26,7% para 13%; esse fator explica 1/3 da desigualdade na evolução da renda entre homens e cerca de 50% das disparidades entre as mulheres;

9) o trabalho se degradou: os desempregados ao conquistarem uma nova vaga ganhavam,em média, 13% menos que no trabalho anterior; 30% dos empregos em 1997 não eram de tempo integral;

10) enquanto a fatia da renda apropriada pelos lares mais ricos (1% do total) cresceu de 37,4% para 39% entre 1989 e 1997, o universo de lares sem ingressos ou com rendimento negativos saltou de 15,5% para 18,5% no período; na população negra, 31% dos lares tinham renda zero ou negativa em 1995 e 39,9% das crianças negras viviam na pobreza então.

Repita-se: tudo isso já ocorria antes do colapso da subprime, enquanto o emprego escalava os níveis mais elevados em 30 anos, os salários, em tese, recuperavam-se e tinham tudo para ascender, uma vez que a produtividade alcançava picos na economia.

Esse paradoxo feito de exploração extrema e festa rentista só não explodiu antes, graças à válvula de escape do endividamento maciço de governos e famílias, cujo ponto de ruptura foi o esgotamento da bolha imobiliária norte-americana, espoleta da crise mundial de 2008.

Foi então que o criativo edifício de uma supremacia financeira baseada no crédito sem poupança (porque sem empregos decentes, sem distribuição de renda e sem receita fiscal compatível) veio abaixo.

Os antecedentes mostram que a tentativa de ‘limpar o rescaldo’ removendo apenas seu entulho financeiro — ou seja, salvando os bancos e arrochando ainda mais os assalariados e os pobres — aprofunda a origem da crise, em vez de enfrentar as suas causas originais.

O buraco no qual se debatem os 47% renegados por Romney é mais amplo e fundo. Controlar as finanças desreguladas é um pilar da ponte necessária para resgatá-los. Mas o retrospecto feito pelo 'The State of Working America' indica que é preciso ir além para alterar a redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas, na base do morde e assopra – -arrocho de um lado, crédito do outro.

Preservar o mesmo modelo, vitaminado agora de um arrocho no crédito, como se tenta, implica uma operação de viabilidade social em aberto.

Trata-se de abandonar a extração da mais valia relativa (exaurida no ciclo de abundancia dos anos 90) e partir para a expropriação in bruto dos assalariados.

É sobre isso que falam as ruas na Europa, e falam cada vez mais alto. Portugal ofereceu-se como boi de piranha dessa travessia gulosamente cogitada pela comitiva conservadora urbi et orbi. O governo austericida de Passos Coelho tentou confiscar 7% ao mês dos trabalhadores, que afluíram em massa às ruas e derrubaram a medida. Outros laboratórios, como é o caso da Grécia, operam experimentos da mesma envergadura com aposentados e aspirantes, cortando a pensão de uns, esticando a corda no pescoço de outros,ademais de regredir aos primórdios da Revolução Industrial, com a revogação da semana de cinco dias, do descanso semanal remunerado e a extinção do salário mínimo. A coisa vai por aí, mas a conversa está em aberto; falta a esquerda apresentar as suas propostas. A ver.

POLÍTICA
















‘Mensalão’: Os 6 argumentos dos que acusam o STF de promover um julgamento de exceção


São Paulo – À medida que avança o julgamento do chamado ‘mensalão’ no Supremo Tribunal Federal (STF), também se avolumam manifestações de intelectuais, juristas e outros nomes públicos sobre as decisões dos ministros. Nesta quarta-feira (26), uma “carta aberta ao povo brasileiro”, assinada por dezenas de personalidades, se espalha pela internet. E comentaristas como o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos já falam que o STF pode estar conduzindo um “julgamento de exceção”.

As críticas recaem sobre diversas questões que envolvem a análise do processo até aqui. Passam pelo ambiente externo ao julgamento, no qual a grande imprensa assume abertamente posição pró-punição, e chegam às teses empregadas pelos ministros nas condenações, consideradas em alguns casos como reinterpretação de posições anteriores da corte.

A Carta Maior reuniu, a seguir, as seis principais linhas argumentativas utilizadas pelos críticos do STF em artigos de jornais, entrevistas e outras manifestações públicas nas últimas semanas. Em geral, eles não tratam da inocência ou culpa dos réus, mas cobram respeito ao devido processo legal - o abrangente conceito constitucional que é uma das bases do estado democrático de direito. Confira:

1) Pressão da grande imprensa: antes do início do julgamento, o jurista Celso Antonio Bandeira de Mello já alertava para o risco de que o STF tomasse uma decisão “política” e não “técnica”, diante da enorme pressão da grande imprensa pela condenação dos réus. Conforme essa linha crítica, a corte, poderia atropelar direitos dos réus, como o duplo grau de jurisdição (o que foi negado no início do julgamento, quando se recusou o desmembramento) e o princípio do contraditório (uso de declarações à imprensa e à CPI pelos réus). Vale lembrar que em 2007, quando o STF aceitou a denúncia, o ministro Ricardo Lewandowski foi flagrado em uma conversa telefônica em que dizia que a “imprensa acuou o Supremo” e “todo mundo votou com a faca no pescoço".

2) Protagonismo da teoria do “domínio do fato”: na falta de “atos de ofício” que vinculem réus às supostas ações criminosas, os ministros – como Rosa Weber e Celso de Mello – têm se valido da teoria do “domínio do fato”, que busca fundamentar a punição de mandantes que por ventura não tenham deixado rastros. O problema é que essa teoria é de rara utilização no STF, e não costuma servir de base única para condenações, segundo o professor da USP Renato de Mello Jorge Silveira, pesquisador do assunto. Diante da ausência de provas e da fragilidade dos indícios contra o ex-ministro José Dirceu, chamado de “chefe da quadrilha” na denúncia do Ministério Público Federal, especula-se que os ministros terão de se valer dessa tese para condená-lo.

3) Nova interpretação do crime de lavagem de dinheiro: pelo entendimento pacificado até antes do “mensalão”, a materialidade da lavagem de dinheiro pressupunha ao menos duas etapas – a prática de um crime antecedente e a conduta de ocultar ou dissimular o produto oriundo do ilícito penal anterior. A entrega dos recursos provenientes dos “empréstimos fictícios” do Banco Rural foi considerada lavagem, e não exaurimento do crime antecedente de gestão fraudulenta de instituição financeira. Da mesma forma, e por apenas um voto de diferença, o saque do dinheiro na boca do caixa foi considerado lavagem, e não exaurimento do crime de corrupção. Para os advogados, esse novo entendimento superdimensionará o crime de lavagem, já que sempre que alguém cometer qualquer delito com resultados financeiros e os entregar a outro, incorrerá, automaticamente, nesta prática.

4) Tratamento distinto do "mensalão tucano": o suposto esquema de financiamento ilegal de campanhas políticas do PSDB de Minas Gerais, montado pelo publicitário Marcos Valério, aconteceu em 1998, portanto cinco antes do caso que envolve o PT. Entretanto, não há previsão de quando haverá o julgamento. O chamado “mensalão tucano” tem 15 pessoas como rés e acabou desmembrado entre STF e Justiça mineira pelo ministro Joaquim Barbosa, que, no entanto, recusou esse mesmo pedido dos advogados no caso em julgamento. O tratamento do Ministério Público Federal também foi distinto: na ação penal contra o PT, o MPF entendeu que o repasse de dinheiro para saldar dívidas de campanha configura crimes como corrupção ativa, peculato e quadrilha. Já no processo contra o PSDB, o entendimento foi de que era mero caixa dois eleitoral. Por causa disso, no caso mineiro o MPF pediu o arquivamento do inquérito contra 79 deputados e ex-deputados que receberam recursos.

5) Julgamento em pleno período eleitoral: ao decidir fazer o julgamento no período das eleições municipais, o STF tornou-se um dos protagonistas das campanhas dos adversários do PT. As decisões dos ministros têm sido amplamente divulgadas nos programas de rádio e televisão, que pretendem gerar danos à imagem de candidatos do partido sem qualquer relação com o processo do "mensalão". Os efeitos eleitorais das decisões da corte podem ser ainda mais intensos porque a maioria dos réus petistas deve ser julgada na semana anterior às eleições municipais.

6) Preconceito contra a política e o campo popular: ainda que os ministros do STF estejam fundamentando juridicamente suas decisões, conforme o princípio da ampla defesa, algumas manifestações durante o julgamento revelam “preconceito” contra os políticos, em especial os do campo popular. O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos tratou do assunto em entrevista à Carta Maior, ao dizer que há um “discurso paralelo contra a atividade política profissional” nas falas de alguns ministros. Não é surpresa que esse discurso é o mesmo daquele da grande mídia, em que o tom acusatório sempre reverberou contra os réus do suposto "mensalão".

*Colaborou Najla Passos, de Brasília


Fonte: www.cartamaior.com.br


NÃO FAZ TANTO TEMPO ASSIM


QUEM TEM MEDO DO ZÉ DIRCEU

Izaías Almada, Agência Carta Maior 


A internet é uma ferramenta maravilhosa. Consegui recuperar um artigo que julgava perdido e quero reproduzi-lo aqui nesses dias preocupantes da política institucional brasileira. Reproduzo-o integralmente, apenas sublinhando no final, para os mais jovens – que com certeza irão votar pela primeira ou segunda vez – agora em outubro – uma opinião dada há oito anos. E também para os que prezam os valores democráticos, aqueles que dão a qualquer acusado o direito da defesa.

Quem tem medo do Zé Dirceu?
Izaías Almada, Caros Amigos
20 de fevereiro, 2004


Há mais ou menos quinze anos, estava eu numa festa de classe média emergente, na noite em que a televisão apresentava nos seus vários telejornais o ridículo espetáculo dos seqüestradores do empresário Abílio Diniz, vestidos com camisetas do PT, quando alguém ao meu lado comentou: "imagina se o Lula ganha as eleições! Vamos ter que dividir nossas casas e apartamentos com favelados e essa gente da periferia..."

Mas o Lula e o PT não venceram aquelas eleições de '89. Com o apoio do jornalismo da Rede Globo de Roberto Marinho, o então "caçador de marajás", soube manipular a opinião pública no debate final entre os candidatos e sacou do seu invejável currículo de honestidade e integridade o episódio de Miriam Cordeiro. Foi o que se viu. O país ingressou numa fase de "modernidade", suas elites ansiosas por pertencerem ao primeiro mundo apostaram no menino bonito das Alagoas que, orgulhoso demais, acabou por não entender o recado. Uma denúncia, uma matéria numa revista semanal e a própria rede Globo aliada aos grandes jornais do país resolveu logo a questão. A elite já tinha um candidato mais confiável para a próxima eleição.

Tal candidato, formado nos laboratórios da universidade brasileira, conhecedor do terreno em que pisava e sabendo exatamente para o que seria eleito, comprou votos para aumentar o seu próprio mandato e sucatear o país para o grande capital internacional, isto é, tentou encurtar o acesso do Brasil ao primeiro mundo, com a farra das privatizações e institucionalizando a "modernidade" da terceirização. O país caminhava a passos largos para o futuro, embora muitos se envergonhassem de apresentar o passaporte brasileiro nas suas viagens de turismo ou negócios.

Entretanto, o PT venceu as últimas eleições e o mundo não desabou. A elite brasileira e seus porta-vozes na imprensa e na televisão perceberam que o monstro não era tão horrendo quanto o pintavam. O Brasil não deu o calote no FMI, os juros baixaram 10% em um ano, ninguém foi obrigado a dividir a casa ou o apartamento com "essa gente" da periferia e com os favelados, a inflação foi contida, mas (e há sempre um mas) pode ser que tudo isso seja apenas para disfarçar. Há mesmo quem diga que o plano do governo Lula é transformar o Brasil numa outra Cuba e que se está apenas dando tempo ao tempo. E que o mentor desse plano de cubanização do Brasil tem no ministro José Dirceu o seu principal defensor. Essa conversa se dá entre ruralistas, alguns empresários, banqueiros e "outros" literalmente menos votados...

"Stalinista", "maquiavélico", "obcecado pelo poder", "primeiro ministro plenipotenciário", e aos poucos a mídia comprometida com o poder econômico (ou que dele faz parte) junto com os bolsões mais retrógrados e conservadores (embora com o edulcorado discurso da modernização) investe contra José Dirceu. Mas no plano das idéias e das hipóteses o embate é sempre mais difícil, até porque o ministro tem sido competente na sua caminhada política.

Que venha então o argumento mais palatável para a mídia e a classe média moralista: a suspeita de corrupção. Prepara-se uma fita (que já traz até a novidade dos letreiros, caso não se entenda o som), onde supostamente alguém está subornando alguém.

Mas quem está subornando? E por quê? Por que existe uma câmera estrategicamente colocada quase sobre a mesa de "negociações? Quem a colocou ali? Onde foi feita a gravação? A pedido de quem e com quais interesses? O assessor Waldomiro ou o bicheiro Carlinhos Cachoeira?

Quando foi feita a gravação? Há algo de representado no diálogo entrecortado e montado. Parece que os atores não representam bem os seus papéis, com o grandioso e surpreendente final do 1%. E a máxima da brasileirada esperta "eu não me sujo por tão pouco", onde é que fica? Será que, num esforço para recuperar a dignidade dos corruptos, o sr. Waldomiro resolveu baixar o percentual dos quase 30% d a era Collor/PC Farias, para 1%, colaborando assim para a queda da inflação?

Atenção que o plano de desmoralização do governo Lula foi posto em marcha. A vítima escolhida, por enquanto, parece ser o ministro José Dirceu, a quem a direita ainda não engoliu e a esquerda purista ainda não entendeu. Aguardemos os próximos lances. A Venezuela já assiste a esse filme há quase três anos.

Fonte: Revista Caros Amigos

Escritor e dramaturgo. Autor da peça “Uma Questão de Imagem” (Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos) e do livro “Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência”, Editora Boitempo.







E por falar em negociações políticas...






POLÍTICA









O VEREDICTO DA HISTÓRIA




por Mauro Santayana,  no JBonline





Cabe aos tribunais julgar os atos humanos admitidos previamente como criminosos. Cabe aos cidadãos, nos regimes republicanos e democráticos, julgar os homens públicos, mediante o voto. Não é fácil separar os dois juízos, quando sabemos que os julgadores são seres humanos e também cidadãos, e, assim, podem ser contaminados pelas paixões ideológicas ou partidárias – isso, sem falar na inevitável posição de classe. Dessa forma, por mais empenhados sejam em buscar a verdade, os juízes estão sujeitos ao erro. O magistrado perfeito, se existisse, teria que encabrestar a própria consciência, impondo-lhe sujeitar-se à ditadura das provas.

Mesmo assim, como a literatura jurídica registra, as provas circunstanciais costumam ser tão frágeis quanto as testemunhais, e erros judiciários terríveis se cometem, muitos deles levando inocentes à fogueira, à forca, à cadeira elétrica. 

Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito – se delito houve – no julgamento de um partido, de um governo e de um homem público. Não é a primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a analogia procede,  apesar da reação de muitos, que não viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões sobre o  atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o presidente Vargas.

Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954, era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do político missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra o mais recente biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô contra o Brasil.

Os golpistas, que se instalaram no Catete com a figura minúscula de Café Filho, continuaram insistindo, mas foram outra vez derrotados em 11 de novembro de 1955.  Hábil articulação entre Jango, Oswaldo Aranha e Tancredo, ainda nas ruas de São Borja, depois do sepultamento de Vargas, levara ao lançamento imediato da candidatura de Juscelino, preenchendo assim o vácuo de expectativa de poder que os conspiradores pró-ianques pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e mesmo que tivesse a mesma alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e teve, como todos sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção nacional do Brasil.

Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso caso, além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a inteligência de Napoleão,  Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida. 

Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele poderia ter governado com  o estado de sítio, como fizera Bernardes. Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então – com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria, depois, o exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar estrangeira e ao esquartejamento do país. 

Vozes sensatas do Brasil começam a levantar-se contra a nova orquestração da direita, e na advertência necessária aos ministros do STF. Com todo o respeito à independência e ao saber dos membros do mais alto tribunal da República, é preciso que o braço da justiça não vá alem do perímetro de suas atribuições.

É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior. Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o povo  ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros assumiram o domínio do fato. 

Os meios de comunicação sofrem dois desvios  à sua missão histórica de informar e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo depois que os jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os poderosos e, naturalmente, pelos seus interesses. 

O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros, à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos, raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da sociedade brasileira.

Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão  à vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos governos de Vargas e de Juscelino.

É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto.    




SOCIEDADE


Um grito parado no ar



Alberto Villas, no sítio da Revista CartaCapital


Quem são as pessoas que gritam em shows? Quem são as pessoas que compram ingressos, se aprontam escolhendo uma roupa bacana, pegam o carro, pagam caro o estacionamento e entram num show prontas pra gritar? E não é de hoje. Uns vão pra assobiar e outros pra gritar mesmo. Tenho em casa gravações de shows ao vivo datadas dos anos 1960 onde lá no fundo a gente ouve aquele…
- Lindo!
Não é só lindo que gritam não. Tem todo tipo de grito. Quem nunca foi a um show de Maria Bethânia e não ouviu quando dá aquele silêncio sepulcral entre uma música e outra, um gritinho…
- Maravilhosa!
Quem nunca foi a um show em que Caetano Veloso está apresentando as suas novas canções e alguém no escurinho não solta um…
- Leãozinho!
Parece que são sempre as mesmas pessoas, as vozes são parecidas mas, na verdade, não são as mesmas não. Quem já foi a um show de Zeca Baleiro? Lembra? De repente, lá no fundo tem sempre um que berra…
- Toca Raul!
Até em show de João Gilberto, o sistemático que reclama não só do barulhinho mas do ar condicionado, das cordas do violão, da iluminação, da vida, da cidade e do banquinho, tem gente disposta a gritar…
- Chega de saudade!
E aqueles que vão lá no fundo do baú e em pleno show do Chico, um Chico desses tempos deQuerido DiárioEssa PequenaBarafunda e Rap de Cálice e gritam…
- A Banda!
Mas é em show de cantora que os animadinhos e animadinhas mais gostam de colocar suas asinhas de fora. Não tem show de Simone, de Marisa Monte, de Marina Lima, de Adriana Calcanhoto que alguém lá no fundo não solte a voz…
- Gostosa!
- Delícia!
Quando entro numa sala de espetáculo e as luzes ainda estão acesas fico olhando pras pessoas e imaginando quem será que vai gritar, que vai se declarar, que vai pedir uma música.
Foi o que aconteceu no show Recanto da Gal Costa que fui na semana passada em São Paulo, um show digamos de passagem, maravilhoso. Mas não deu outra. E dessa vez não foi uma voz que saiu não se sabe de onde. Saiu de um cara na minha mesa, ao meu lado, que foi ao show com frases prontas e não deixou por menos. Bastou um silêncio depois da cançãoDivino Maravilhoso pra ele dar o seu berro…
- Um tapa na cara das botocadas!
Todo mundo, acho que meio constrangido, engoliu em seco. Mas eis que de repente, logo depois dela cantar Neguinho, lá vem ele de novo…
- Marilena Chauí número dois!
A resposta veio a cavalo. Um outro cara, lá do outro canto da sala não deixou por menos…
- Vá se foder!
Confesso que gostei mais deste. Foi o último grito que se ouviu naquela noite de sábado naquele recanto.


PS do Blog: quem nunca sentou ao lado de um "ivo trindade" em algum show da vida, e ouvi-lo gritar, com
a boca cheia de pipoca, pedindo uma música?











A ascensão conservadora em SP





Matheus Pichonelli, na Revista CartaCapital


Num seminário sobre a ascensão do conservadorismo em São Paulo realizado na USP no final de agosto, a filósofa Marilena Chauí provocou risos na plateia ao contar o estranhamento de uma amiga sobre o comportamento de parte dos habitantes da maior cidade do País. A amiga dizia custar a entender como pessoas tão hospitaleiras e civilizadas na vida doméstica se transformavam em “feras indomáveis” quando entravam em espaços compartilhados, como o trânsito ou as filas do banco.
É fato. Quem já acompanhou os bate-bocas diários protagonizados em disputas fratricidas pelas faixas preferenciais, barbeiragens no trânsito ou um simples carrinho de supermercado sabe do que a filósofa está falando. Nessas pequenas disputas pelos espaços públicos, brigamos, ofendemos, damos cotoveladas, estacionamos em vagas proibidas, ofendemos os garçons, o manobrista, o vendedor, o atendente, o empregado, o motoboy, a vizinha do terceiro andar…e tudo parece natural, pacífico até segunda ordem.
Burns é brasileiro. E mora (e vota) em São Paulo
Como se ganhar no grito fosse esporte popular. Não é. Como explicou Chauí no mesmo evento, essa deterioração das relações interpessoais possui raízes históricas. Tem base numa violência historicamente cristalizada que opera com base na discriminação e preconceito de classe, sexo, religião, profissão e raça. Que naturaliza as diferenças. Que não reconhece a humanidade do outro. Que confunde o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade com um conjunto de regulamento típico das empresas e suas horas marcadas e regras de comportamento. E se assenta sobre as “características mais alarmantes” do neoliberalismo: o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço da vida privada.
O resultado é que sabemos tudo da intimidade da celebridade mas não somos capazes de conviver de forma civilizada nos espaços comuns, onde o “outro” é sempre uma ameaça. E corremos para nos abrigar em escolas, escoltas ou sistema de saúde privados: para nos “proteger” e nos diferenciar.
A violência é, muitas vezes, uma reação de quem vê o acesso a esses espaços antes impenetráveis como a invasão de um espaço cativo. Como se a proteção fosse violada e o prestígio, ameaçado pela presença das “gentes diferenciadas”.
Em tempos de eleição, essa violência latente ganha amplificação nos discursos. O desafio é puxar meia hora de conversa em qualquer grupo de qualquer lugar e passar menos de cinco minutos sem ouvir velhos absurdos. Discursos que, mais do que ignorância política, atestam a manifestação impune dos mais elementares preconceitos sociais.
Daí a mesmice, ouso dizer, dos questionamentos em tempos de campanha (“O senhor é a favor do aborto?”. “Vai permitir casamento entre gays?”. “Acredita em Deus?”) e posições dos candidatos (“sou a favor da ética”, como quem se posiciona a favor do sol, da saúde e da alegria). Tanto a mídia como as campanhas políticas sabem exatamente o terreno em que pisam. Por isso todos resolvem, a cada dois anos, querer saber o que pensam os líderes religiosos sobre tal e qual candidato. O referendo para as urnas passa pela benção dos homens de fé.
É como se, dotado dos padrões de comportamento religioso exigidos, o candidato fosse incapaz de mexer nas duas obsessões das classes conservadoras, base do eleitorado, e também citadas pela filósofa: a ordem e a segurança.
Esse comportamento foi, em parte, retratado na pesquisa Datafolha divulgada no domingo 23 sobre o perfil do eleitor paulistano. O levantamento mostrou que nada menos do que 79% dos eleitores acham que acreditar em Deus torna as pessoas melhores. Com perguntas como esta (eram dez no total), o instituto mostrou haver em São Paulo nada menos do que 34% de eleitores identificados como conservadores – enquanto apenas 27% se dizem liberais. O restante se diz neutro.
E o que é ser conservador em São Paulo, além do já citado talento em se estapear pela faixa de trânsito ou pelo carrinho de supermercado (afinal, paga-se para se ter razão)? Pela pesquisa, descobrimos exatamente quem confunde as atribuições do Estado com uma cerca elétrica aos medos mais inexplicáveis. Na metrópole, mostrou o Datafolha, duas em cada dez pessoas acreditam que a homossexualidade deve ser desencorajada pela sociedade. Mais: três em cada dez eleitores acham que pobres migrantes trazem problemas para a cidade; e 60% veem na “maldade das pessoas” a causa principal da violência.
É a divisão clara de quem vê o mundo por uma ótica simplista fora do próprio umbigo. E que, como consequência, cobra soluções fáceis para lidar com problemas que não consegue explicar. É o que leva uma parcela assustadora do eleitorado (41%) a considerar a pena de morte como a “melhor punição para indivíduos que cometeram crimes graves”.
O cálculo parece claro. Esse eleitor quer soluções agressivas contra tudo o que o ameace (da prisão de adolescentes infratores à proibição total das drogas) e, ao mesmo tempo, tem dificuldade em participar da vida pública, algo evidente da concepção segundo a qual os sindicatos “servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores”, como declaram 60% dos eleitores.
Não estranhe se um dia, numa roda de conversa, identificar neste eleitor a “fera indomável” citada por Chauí. O cidadão-eleitor que em casa fala de paz, prosperidade, valores, esforço, que bota nariz de palhaço ao votar e sai às ruas, uma vez por ano, para cobrar “ética na política” pode ser capaz de promover uma hecatombe se alguém chegar perto do seu automóvel, o único elo que o diferencia numa multidão sem identidade a reproduzir uma velha violência incrustada. O reacionarismo que exige do Estado medidas duras contra tudo o que não é ele é a face mais notável da covardia.


 PS do Blog: qualquer semelhança com o que você observa aqui no Recife, não é mera coincidência.

INTERNET E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO














Ninguém está acima da lei. Nem o Google



Matheus Pichonelli, na Revista CartaCapital



Deu no Washington Post. Deu no Wall Street Journal. E deu na BBC. A notícia sobre a prisão do diretor-geral do Google no Brasil, Fabio José Silva Coelho, colocou o país na lista dos inimigos da liberdade de expressão.
Tudo porque, apesar das determinações judiciais, um vídeo considerado ofensivo a Alcides Bernal (PP), candidato a prefeito em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, continuava a ser acessado impunemente no YouTube, o site de compartilhamento de vídeos da gigante da internet. Os vídeos associavam o candidato à prática de aborto e à agressão doméstica.

A direção do Google tem condições de, num átimo, retirar do ar as manifestações de ódio ou ofensa, diz ex-presidente do TSE
“Não posso permitir que gente mal intencionada, agindo criminosamente, use o Google e o YouTube para fazer campanhas difamatórias contra pessoas que estão trabalhando”, afirmou Alcides Bernal, que nega as acusações do vídeo.
A ordem de prisão foi dada na semana passada pelo juiz eleitoral Flávio Saad Peron, mas o Google recorreu. A decisão, no entanto, foi mantida e transformou a prisão de Coelho, na quarta-feira 26, na principal notícia do dia. O diretor foi ouvido durante a tarde na Superintendência da Polícia Federal em São Paulo e liberado pouco depois.
Em tempos de acirramento de disputas eleitorais, o episódio suscitou a discussão: a lei eleitoral não está pronta para arbitrar sobre a internet ou a internet não está adaptada à lei eleitoral?
O Google argumenta: “somos uma plataforma e, portanto, não somos responsáveis pelo que se publica em nosso site”.
Seria, portanto, como condenar uma banca de jornais por entregar reportagens com conteúdo ofensivo? Não exatamente.
Sobre esta discussão, o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Carlos Velloso, um dos idealizadores do voto eletrônico no Brasil, afirma que o veículo responsável por publicar uma suposta ofensa é também passível de uma eventual contestação judicial. Velloso explica que a lei eleitoral tem como atribuição zelar pelo princípio da igualdade na disputa. Logo, se a Justiça entendeu haver um atropelo a esse princípio, determinou medidas e elas não foram atendidas, a plataforma passa também a ser responsável pela ofensa em razão da omissão. “O código eleitoral prevê o crime de desobediência aos que descumprem a determinação. Não acho que o juiz eleitoral cometeu erro nem excesso”, diz.
E complementa: “Especialistas na área de informática dizem que é possível haver controle, sim. A direção do Google tem condições de, num átimo, retirar do ar as manifestações de ódio ou ofensa”. Velloso lembra que “a constituição brasileira consagra a liberdade de expressão na sua forma mais abrangente”. “Agora, essa mesma constituição determina que seja respeitada a imagem das pessoas. O excesso, quando há calúnia e injúria, é também punido. Esta é a realidade legal brasileira a que a empresa virtual há de se adaptar. Não há liberdade em absoluto em nenhum ponto.”
Velloso faz, no entanto, uma observação: o crime estabelecido é de baixo potencial ofensivo à sociedade. Logo, não faria sentido se o diretor brasileiro do Google permanecesse preso – de fato, ele foi liberado no mesmo dia.
Hoje, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, o Google está envolvido em ao menos 138 ações desde o início da campanha. A maioria cobra a retirada de vídeos do YouTube. Desde então houve 42 decisões contrárias à empresa, com fixação de multas em caso de descumprimento das determinações.
Recentemente um juiz de Alagoas mandou remover do YouTube um vídeo que chamava Ronaldo Lessa (PDT) de “ficha suja”. Outras ações começam a pipocar Brasil afora, movidas por candidaturas dizendo-se ofendidas pelas mensagens veiculadas na rede.
Fora da Justiça Eleitoral, o site de compartillhamento de vídeos se tornou o epicentro dos debates em torno da exibição do filme anti-islã A Inocência dos Muçulmanos, que provocou a revolta de religiosos no mundo árabe. O Google foi obrigado a retirar o vídeo em vários países, inclusive no Brasil, em razão do conteúdo ofensivo do filme. Sobre este episódio, atendendo em parte a um pedido da União Nacional das Entidades Islâmicas, o juiz Gilson Delgado Miranda, da 25ª Vara Cível de São Paulo, lembrou que o provedor de hospedagem não é responsável pela fiscalização do conteúdo postado, mas, “ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica”.
E concluiu: “ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários”.
Este, ao que tudo indica, é o novo cerne da questão (e não apenas se o controle representa ou não uma censura). Nos Estados Unidos, onde o vídeo anti-islã segue liberado em nome da liberdade da expressão, a discussão agora é outra: por que o mesmo servidor que se nega, mesmo sob determinação judicial, a “entregar” o agressor (protegido, muitas vezes, pelo anonimato) pode decidir quando e como excluir usuários a violar os termos e condições de seus serviços?
A explicação, com base na recente expulsão sumária do Wikileaks promovida por outro gigante da internet, a Amazon, é simples, conforme artigo assinado por Jonh Naughton, do Observer: as empresas “podem parecer espaços públicos, mas quando se vai ao cerne elas não oferecem mais liberdade de expressão que um shopping center comum”.



21 setembro 2012

POLÍTICA



LEIA:

Entrevista com o ex-ministro e controlador do governo Lula, Waldir Pires,
concedida ao jornalista Bob Fernandes.

Artigo de Mauro Santayana sobre a "campanha" de FHC pela moralidade na
política (tem moral pra tanto? pergunto eu)

Artigo de Marcos Coimbra analisando o STF diante da mídia, por conta
do julgamento do dito "mensalão".

Artigo de Saul Leblon sobre a utilização do "mensalão" na campanha de Serra.

Na seção RELIGIÃO E POLÍTICA, dois artigos interessantes analisam os
desdobramentos dos protestos no Oriente Médio e a maneira que o Ocidente
vê os países da região. Entre outros.


A OBSESSÃO DA MÍDIA


Mino Carta, na Revista CartaCapital



Por que Lula se tornou a obsessão da mídia nativa? Por que tanta raiva armada contra o ex-presidente? Primeiro é o ódio de classe, cevado há décadas, excitado pelo operário metido a sebo, tanto mais no país da casa-grande e da senzala. Onde já se viu topete tamanho? Se me permitem, Lula é personagem de Émile Zola, assim como José Serra está nas páginas de Honoré de Balzac. O sequioso da emergência que chegou lá.
Dez anos depois. No fim de setembro de 2002, jornalões e revistões enxergavam Lula como se vê acima. E o operário ganhou as eleições…
Depois vem a verdade factual, a popularidade de Lula, avassaladora. E vem o confronto com os tempos de Presidência tucana, e o triste fim de Fernando Henrique Cardoso, o esquecido, no Brasil e no mundo. Assim respondem os meus meditativos botões às perguntas acima. E as respostas geram outra pergunta.
Por que a mídia nativa, intérprete da casa-grande, goza ainda de prestígio até junto a quem ataca diária e obsessivamente se seus candidatos perdem os embates eleitorais decisivos?Memento 2002, 2006, 2010. Mesmo agora, véspera dos pleitos municipais, as coisas não estão bem paradas para os preferidos de jornalões e revistões. Será que o jornalismo brasileiro dos dias de hoje faz apostas erradas? Defende o indefensável?
Na semana passada publiquei os números da verba publicitária governista distribuída entre as empresas midiáticas. Mais de 50 milhões para a Globo. Para nós, pouco mais de 100 mil reais. E sempre há quem apareça para nos definir como “chapa-branca”… E a Editora Abril, então? Na compra de livros didáticos, fica com a parte do leão em um negócio imponente que em 2012 já lhe assegurou a entrada de 300 milhões. Pode-se imaginar o que seus livros ensinam. Enquanto isso, a Petrobras acaba de cancelar um contrato de 11 milhões que estava para ser fechado com a casa do Murdoch brasileiro. Vem a calhar, a confirmar-lhe tradições e intentos, a última capa da sua querida Veja, ponta de lança na estratégia da guerra contra Lula.
A revista de Policarpo Jr., parceiro de Carlinhos Cachoeira em algumas empreitadas, produz esta semana mais uma obra-prima de antijornalismo. Formula acusações gravíssimas contra Lula sem esclarecer quem as faz (Marcos Valério ou seus pretensos apaniguados?), mas nome algum é citado, e o advogado do publicitário mineiro desmente a publicação murdoquiana. Ricardo Noblat (porta-voz de Veja?) informa no seu blog que a Abril vai divulgar o áudio de uma entrevista com Valério, e horas depois comunica que Policarpo Jr. convenceu a direção da Abril a deixar para lá, ao menos por ora.
Quanta ponderação, por parte de Policarpo… Suas relações com Cachoeira CartaCapitalprovou com documentos tão irrefutáveis quanto inúteis: a CPI não vai convocá-lo para depor, como seria digno de um país democrático, porque o solerte presidente-executivo abriliano foi ter com o vice-presidente da República para lembrá-lo de que se Veja for julgada, todos os demais da mídia nativa entram na dança.
Este específico enredo prova as dificuldades de governar o país da casa-grande e da senzala. É preciso recorrer a alianças que funcionam como a bola de ferro atada aos pés do convicto e padecer como vice o representante de um partido pronto a ceder diante das pressões da Abril. E da Globo, como CartaCapital relatou ao longo da cobertura da CPI do Cachoeira. Resta o fato: a mídia nativa é bem menos poderosa do que os graúdos supõem, inclusive os do próprio governo.
Uma exceção talvez seja São Paulo, com sua capital dos shoppings milionários, da maior frota de helicópteros do mundo depois de Nova York, de favelas monstruosas a rodear os bairros endinheirados, de mil homicídios anuais (5 mil no estado). Refiro-me à cidade e ao estado mais reacionários do Brasil. Aqui tudo pode acontecer. De todo modo, os senhores, de um lado e do outro, caem na mesma esparrela dos jornalistas que os apoiam ou os denigrem. Os jornalistas e seus patrões, na certeza da ignorância da plateia, acabaram por assumir o nível mental que atribuem a seus leitores, ouvintes e assistentes. Os graúdos apoiados agarram-se em fio desencapado, os ofendidos temem um poder em vias de extinção. E não percebem que a tentativa de demonizar Lula consegue é endeusá-lo.





INTERNACIONAL


Nesses tempos de demolição, a Espanha e seu governo têm posto ênfase especial no tratamento dado aos imigrantes que estão em situação ilegal, e trata com sanha perversa aqueles que tratam de chegar. Os espaços para os estrangeiros que não têm visto de residência encolhem de maneira veloz. Os benefícios existentes desaparecem. Desde 1999 os espanhóis tinham, entre seus vários orgulhos, o de contar com um dos melhores e generosos serviços de saúde pública da Europa. Os imigrantes, inclusive os que não haviam obtido residência permanente ou a nacionalidade espanhola, eram amparados. Eram: o governo de direita de Mariano Rajoy acabou com essa concessão.

O sistema financeiro, com a saúde profundamente abalada, merece do governo espanhol todas as atenções, todos os mimos e todos os cuidados de um paciente em estado grave. Os prognósticos são bons. Já os milhares e milhares de estrangeiros que buscaram amparo e uma vida minimamente decente – em muitos casos, mais do que isso: buscaram salvar a própria vida – estão vendo o futuro encolher e o horizonte se afastar cada vez mais.

Os imigrantes são cerca de 9,2% da população espanhola, que ronda a casa dos 47 milhões de habitantes. E 56% desses imigrantes vivem em situação de pobreza extrema. Para resolver pelo menos parte desse problema, o governo de Mariano Rajoy adotou uma nova tática: impedir, diretamente, a chegada de novos imigrantes, principalmente os que partem da África e tratam de chegar à costa da Andaluzia.

Agora mesmo, no começo de setembro, vários imigrantes ilegais que saíram do Marrocos foram recebidos a golpes de cassetete, disparos de pistolas que emitem raios elétricos, bordoadas a granel. Foram todos devolvidos, em lanchas espanholas, para praias do Marrocos e da Argélia. No grupo havia mulheres grávidas e crianças.

Ironias da vida: foi assim, sem nada e sem volta, que milhares de espanhóis vagaram fora de seu país há uns setenta e poucos anos, quando a Guerra Civil que cindiu a Espanha em duas chegou ao fim. Expulsos de sua terra, sem outra bagagem que a derrota, a humilhação e o abandono, foram acolhidos em outras paisagens. Aqui mesmo, na América Latina, são muitas as histórias dessa acolhida, e são muitos os ensinamentos e benefícios que os refugiados nos deixaram.

Nesses tempos de hoje, de mesquinharia e ausência total de qualquer resquício de solidariedade, vale a pena lembrar uma história – uma, entre dezenas e dezenas – do abrigo oferecido pela América Latina aos espanhóis em desgraça.

Na noite do dia 2 de setembro de 1939, um sábado, o Winnipeg, um velho e mal ajambrado cargueiro francês, atracou no porto de Valparaíso, no Chile, com sua carga de 2.365 republicanos espanhóis.

Na manhã do dia seguinte todos eles desceram a sacolejante rampa e pisaram terra pela primeira vez em um mês. Haviam passado a noite no tombadilho, contemplando o país que seria deles. Eram todos republicanos que tinham buscado refúgio na França depois do fim da Guerra Civil vencida por Francisco Franco. O refúgio que encontraram foram campos de concentração, cercados de arame farpado, onde ficaram confinados no frio, mal alimentados, abandonados à própria e ingrata sorte.

Foram resgatados por Pablo Neruda, um homem que conhecia a absoluta extensão, todo o peso da palavra solidariedade.

Neruda havia vivido o sonho da República Espanhola, tinha padecido a derrota como se fosse dele, e suas noites eram de pesadelo desde a chegada de Francisco Franco ao poder numa Espanha estilhaçada. Ele, que havia sido cônsul chileno em Barcelona e Madri, estava de regresso ao seu país, onde recebia as notícias da desgraça.

Tinha acabado de dirigir a campanha eleitoral do presidente Pedro Aguirre Cerda. E decidiu pedir um posto no governo. Foi ao presidente e disse o que queria: ser nomeado cônsul plenipotenciário. Mas não para uma cidade em particular: queria ser o cônsul chileno para a emigração espanhola para o Chile. Um cargo diplomático que não existia, e foi inventado para ele.

O Chile vivia sua própria desgraça: pouco antes, o terremoto de Chillán havia arrasado parte do país e matado 30 mil pessoas. A crise econômica era feroz. Mas havia quem estivesse em situação ainda pior. Haveria lugar e trabalho para todos.

Neruda se instalou em Paris, entrou em contato com as autoridades francesas – que se mostraram diligentes diante da possibilidade de se livrarem de parte do fardo desagradável que eram os 500 mil refugiados espanhóis – e fretou o velho cargueiro da Companhia Francesa de Navegação que havia servido para transportar tropas na I Guerra Mundial e há anos não se arriscava em viagens longas. Sua tripulação era de uns vinte marujos. Em seus porões foram instalados beliches para mais de duas mil pessoas.

O veterano barco zarpou do porto fluvial de Trompeloup, perto de Bordeaux. Muitas das famílias que embarcaram se reuniam ali depois de anos de separação. Vinte e nove dias depois, na noite de dois de setembro, fundeou na baía de Valparaíso.

A cidade estava iluminada, e se exibiu, toda bela, para os que chegavam. No dia seguinte, conforme iam tocando terra, cada um dos 2.365 passageiros foi recebido com uma rosa. Começava assim sua nova vida.

Um dos passageiros contou, décadas depois, que chegou ao Chile com um único franco francês no bolso. E que no amanhecer daquele domingo, 3 de setembro, atirou ao mar antes de descer do Winnipeg. Queria começar do zero. Queria confiar no futuro.

Aliás, e a tempo: não foram 2.365 passageiros que chegaram ao Chile. Foram 2.366: na travessia nasceu uma menina, que foi chamada de Agnes América Winnipeg Alonso.

Anos mais tarde, ao falar do Winnipeg, Neruda disse: “Se os críticos quiserem algum dia apagar minha poesia, que apaguem. Mas este poema, que recordo até hoje, ninguém apagará jamais”.

Em 2009, quando se cumpriram 70 anos da travessia do barco, uns 40 sobreviventes foram homenagear o poeta morto. Sobre sua tumba, na Isla Negra, despejaram punhados de terra espanhola. Contaram, então, que não era uma homenagem pela data: faziam a mesma coisa todos os anos, desde que Neruda morreu. Punhados da Espanha – país que Neruda amou como se fosse o dele – para zelar pelo descanso do poeta que deu a eles uma nova terra.

Terra da Espanha, a mesma Espanha que hoje nega abrigo a quem procura, que nega amparo aos que chegaram fugindo de suas próprias desgraças, suas próprias derrotas. Terra ingrata, a Espanha? Ou de um governo ingrato, feito de homens sem alma, sobre cujas tumbas ninguém jamais arrojará um punhado sequer de gratidão e memória?


Fonte: www.cartamaior.com.br