28 fevereiro 2014

INTRIGAS DA OPOSIÇÃO

A partitura não muda


Mino Carta, na Revista CartaCapital




Quando Fernando Henrique Cardoso e José Serra formavam uma dupla de primeiríssimo plano na política brasileira, quantas vezes um terá criticado comportamentos do outro em conversas entre correligionários e amigos? E nem se diga de quando Serjão Mota formava com eles uma trinca aguerrida... Serjão podia ser de fala muito desabrida.
Há razões de sobra para crer que nem sempre foram ouvidas referências suaves de um integrante da trinca em relação aos companheiros. É do conhecimento até do mundo mineral que nem tudo correu às mil maravilhas entre eles. Não recordo, porém, de ter lido menção a respeito na mídia nativa. A qual neste exato instante relata críticas de Lula à administração da presidenta Dilma, a insinuar alguma turbulência entre os dois.
Dentro dos conformes, está claro. O verdadeiro partido de oposição, nas páginas impressas, e pelo rádio e pela tevê, trata de interpretar a contento o seu papel neste começo do ano eleitoral. É o resultado de uma obsessão visceral, elevada à enésima potência em função do tempo curto.
Não aludo aqui à verdade factual, que no caso desconheço. Dou minha opinião. A partir da ideia de que certas palavras têm de ser entendidas dentro das suas circunstâncias. Político sutil e muito experiente, Lula sabe que mesmo as paredes têm ouvidos, e do febril estado de prontidão da mídia. Talvez lhe convenha escolher melhor os interlocutores. Talvez. Mas que tenha feito alguns reparos ao governo é totalmente admissível, ao sabor de determinados introitos, no gênero “Dilma deveria...” ou “Dilma poderia...”. No condicional. É o que acho, honestamente.

Reparos corretos? Sim, no meu entendimento. Dois pontos críticos são transparentes. Dificuldades no Congresso, dificuldades com o empresariado. Desde seus tempos de sindicalista, Lula é excepcional praticante do jogo político. Contemporizador quando é preciso, certeiro na hora do ataque. Faltou a Dilma Rousseff e ao seu governo fazer política no sentido da negociação eficaz. Da busca, pelo diálogo, do entendimento sem imposições.
O Parlamento tornou-se terreno minado para o governo, mesmo as bancadas petistas, esta é forte impressão, não se afinam com Dilma. O Congresso brasileiro está longe, muito longe, de constituir um poder exemplar. Poder é, entretanto, e ali se compõe a maioria indispensável a quem governa. Os problemas na lida com esta maioria são evidentes, além dos antigos, tradicionais, à luz de uma aliança ditada por conveniências fisiológicas em lugar da coincidência de ideias e princípios. É evidente, também, que não há alternativa à tentativa de resolvê-los pelas sendas, às vezes tortuosas, da política, na sua acepção mais imediatista.
O distanciamento entre o governo e os empresários desfralda-se igual a bandeira ao vento. Nem todos os empresários, além de cuidarem dos seus interesses, preocupam-se com os do País. Por outro lado, é inegável que os responsáveis pela economia e pelo desenvolvimento optaram às vezes por decisões apressadas, para não dizer afoitas, de sorte a prejudicar este ou aquele empresário, em detrimento não somente dele, mas também do próprio interesse nacional.
Lula teria dito que a atual equipe econômica governista tem “prazo vencido”. Certo é que ela amiúde foi hesitante e que, em geral, careceu de atitudes assertivas, enquanto sofremos como nunca as consequências da crise mundial e ressurge o vezo verde-amarelo de contribuir para a inflação à procura da ilusória sensação do bolso cheio. Não é por acaso que o custo de vida aumenta e o Brasil se torna um dos países mais caros do mundo, além do quarto mais desigual.  Só não entendo porque a presidenta se preocupa em afirmar que ninguém conseguirá separá-la de Lula.

MANIPULAÇÃO E MALABARISMO

O inexorável peso dos fatos


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



É manchete nos principais jornais de sexta-feira (28/2) o resultado da economia brasileira no ano de 2013. O tom de espanto domina os títulos das reportagens e das análises dos economistas credenciados pela imprensa. O Produto Interno Bruto cresceu 2,3%, contrariando o canto fúnebre entoado incessantemente pela mídia tradicional até o dia anterior. O discurso muda subitamente: agora, diz-se que “uma surpresa favorável estancou a piora das expectativas”.
As edições da véspera de carnaval devem ser guardadas pelos analistas da comunicação jornalística como um caso a ser estudado em futuras pesquisas. Trata-se da mais deslavada demonstração de irresponsabilidade, para não dizer manipulação criminosa, no exercício dessa que já foi considerada uma atividade luminar da vida moderna.
Ao ver desmentidas pelos números suas próprias adivinhações, a imprensa usa o contorcionismo das metáforas para dizer que, agora, as expectativas catastrofistas não têm sentido. Ora, mas quem foi que criou essas expectativas, se não a própria imprensa, ao dar abrigo e destaque para as piores previsões disponíveis?
Com exceção de uma minoria de especialistas, que passaram as últimas semanas fazendo penosos malabarismos verbais para não cair na corrente do apocalipse, o conteúdo dos jornais tem induzido os operadores da economia a um estado mental depressivo, que afeta principalmente o setor industrial, mais suscetível ao clima de pessimismo. Alguns textos acusam o governo atual de haver insuflado no mercado um otimismo exagerado, há três anos, ao projetar taxas de crescimento anuais em torno de 4%.
Acontece que, desde então, a imprensa tem trabalhado no sentido contrário, produzindo um clima que induz a estratégias cautelosas por parte dos investidores. Ainda assim, note-se, o nível de investimento cresceu 6,3% em 2013, a maior alta desde 2010. O gráfico apresentado pelo Estado de S. Paulo anota, timidamente, que os investimentos devem crescer mais em 2014, impulsionados pelas obras da Copa do Mundo.
Manipulação e malabarismo
No amplo espectro das causas que compõem os fenômenos complexos, não se pode descartar o efeito do pessimismo da imprensa sobre escolhas de empresários e executivos mais conservadores. Observe-se que, progressivamente, a predominância de opiniões negativas sobre a economia brasileira se tornou tão hegemônica que alguns autores passaram a usar e abusar de figuras de linguagem para se dirigir a seus leitores, abrindo mão do vocabulário econômico específico.
Interessante notar também que um dos destaques das edições de sexta-feira (28) é a frase de uma jovem economista muito apreciada pelos jornais, que costuma usar referências literárias para ilustrar suas análises. Em declaração no Estado de S. Paulo, ela afirma que o desempenho do PIB “vai gerar um choque de realidade sobre a economia do País. O pessimismo não se traduz em recessão ou queda do PIB”, observou. O leitor atento vai pesquisar suas manifestações anteriores e constata que a economista tem sido uma das mais agressivas ativistas do pessimismo, useira contumaz de ironias.
Note-se também que, mesmo diante da realidade que contraria tudo que vinha publicando, a imprensa se esforça para diminuir o impacto dos fatos sobre suas previsões alarmistas. Numa página inteira em que analisa sinais de mudança no modelo brasileiro de crescimento, a Folha de S. Paulo apresenta na edição de sexta-feira um ranking das economias que mais cresceram, lançando mão de um artifício primário para minimizar a importância do desempenho do Brasil: em dezembro, quando noticiaram estudos sobre mudanças na economia dos Estados Unidos, os jornais dividiram os países em dois blocos – os mais vulneráveis e os menos vulneráveis.
E qual o critério adotado agora pela Folha, para classificar o desempenho dessas mesmas economias em 2013? Divide os países em três blocos, colocando o Brasil no bloco intermediário.
Se optasse pelo mesmo critério usado para destacar a análise pessimista, o jornal teria feito um quadro com dois blocos, e o Brasil seria apresentado entre os quatro países que mais cresceram, junto com China, Indonésia e Coréia do Sul.
São manobras como essa, inspiradas claramente num viés ideológico e no interesse político, que afetam a credibilidade da imprensa.
 
 
 

EM BENEFÍCIO DA CIDADANIA BRASILEIRA

Juízes no palanque - quarentena
necessária


Dalmo de Abreu Dallari(*), no Jornal do Brasil



Os juízes exercem atividade política em dois sentidos: por serem integrantes do aparato do poder do Estado, que é uma sociedade política, e por aplicarem normas de direito, que são necessariamente jurídico-políticas. Com esta observação inicio um capítulo de meu livro O poder dos juízes, capítulo intitulado Assumir a politicidade, no qual procuro demonstrar a necessidade e conveniência de assumir a politicidade implícita no desempenho das funções jurisdicionais. Além desse aspecto mais amplo da politicidade, acrescento mais adiante que o juiz é cidadão, exerce o direito de votar, o que, obviamente, implica uma escolha política. 
Existe, entretanto, uma grande diferença entre essa participação política, em sentido amplo, e a participação político-partidária. Com efeito, quem é filiado a um partido político ou se elegeu por ele e toma suas decisões políticas respeitando as implicações subentendidas nessa filiação tem reduzidas sua independência e imparcialidade, pois muitas vezes aposição adotada pelo partido é o reflexo de uma circunstância particular, não sendo raro que as direções partidárias façam acordos objetivando a obtenção de certos benefícios mas contrariando disposições do programa do partido, que, em princípio, é um compromisso para os filiados ao partido. E aí acaba a independência do filiado. 
A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu no artigo 95, parágrafo único, inciso III, que aos juízes é vedado «dedicar-se a atividade político-partidária». É interessante e oportuno observar que no mesmo artigo da Constituição, no inciso V, está disposto que é vedado aos juízes «exercer a advocacia  no juízo ou tribunal de que se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração». Note-se que no tocante ao exercício da advocacia foi estabelecida a quarentena, ou seja, um prazo que deve ser observado para que cesse a proibição, ao passo que quanto à atividade político-partidária dos juízes foi estabelecida, pura e simplesmente, a proibição, o que significa que no dia seguinte ao da aposentadoria ou exoneração o juiz já pode filiar-se a um partido. Isso é altamente inconveniente por vários motivos que a prática demonstra. 
Exatamente porque muitas de suas decisões têm nítido significado político, no sentido de político-partidário, é importante que o juiz só possa filiar-se a um partido depois de observada uma quarentena, que poderia ser de dois anos. Com efeito, o juiz que ainda noexercício das funções jurisdicionais já entrou em contato com um partido para filiar-se logo que deixar o cargo será inevitavelmente influenciado por esses entendimentos. Os casos que lhe forem submetidos e nos quais o partido ou os dirigentes partidários tenham interesse serão conduzidos e decididos sob essa influência, comprometendo seriamente a independência e  imparcialidade do juiz. O fato de proibir a filiação partidária durante o prazo da quarentena impedirá o juiz de candidatar-se a cargo eletivo, mas ele será um eleitor prestigioso e não estará impedido de externar suas opiniões políticas. A proibição será da filiação partidária e, consequentemente, de se candidatar, pois a lei eleitoral exige a comprovação de filiação partidária para alguém ser candidato. Vem a propósito lembrar uma ponderação do ministro Joaquim Barbosa, num pronunciamento favorável à quarentena para o exercício da advocacia pelos juízes. Disse o ministro que «o caráter da quarentena prevista na Constituição é muito restrito, uma vez que o juiz aposentado segue fazendo jus a seus proventos. 
Em conclusão, para a preservação da independência e imparcialidade dos juízes é necessário fixar-se um prazo de quarentena para que ele se filie a um partido político depois de deixar o  . É preciso impedir que o juiz, ainda no exercício das funções jurisdicionais, estabeleça entendimentos com algum partido político, pois ocorrerá, inevitavelmente, a influência desses entendimentos, e por mais que se esforce para evitá-la em suas decisões sofrerá tanto as pressões direitas do partido e de seus dirigentes, como indiretas, decorrentes de sua opção político-partidária. E o fato de não poder filiar-se a um partido não impedirá que ele exerça sua cidadania como eleitor e manifestante independente, o que, parafraseando a expressão usada pelo ministro Joaquim Barbosa, é um impedimento muito restrito. Em benefício da cidadania brasileira e dos próprios juízes, é importante que a lei estabeleça uma quarentena para sua filiação partidária.    
* Dalmo de Abreu Dallari é jurista. 
 
 

NÃO TÁ CHEIRANDO BEM





Joaquim Barbosa e o exemplo do
Tea Party

O destempero do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Joaquim Barbosa contra seu colega Luís Roberto Barroso - pelo fato de ter proferido um voto contrário ao seu entendimento - é prova maior do fundo do poço em que o Tribunal foi colocado pelas intenções políticas de alguns ministros.
Quem conhece Joaquim Barbosa de perto, assegura: não é desonesto, não é malicioso, não se mete em negócios obscuros nem em más companhias, como seu colega Gilmar Mendes. Mas é um completo desequilibrado.
Dia desses conversava com um ex-conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Dizia ele que, se Barbosa entrar em um recinto e ver duas pessoas cochichando, imediatamente armará encrenca, supondo que estejam falando dele.
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Na sessão do STF – que deliberou sobre a acusação de formação de quadrilha para os réus da AP 470 – Barbosa interrompeu várias vezes Barroso, foi grosseiro, atropelou todos os códigos de conduta, ao insinuar que o colega teria negociado seu voto para conseguir o cargo.  Mas quem vai tirar o piloto do Boeing em pleno vôo?
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Tempos atrás, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso alertou para os riscos da aventura Joaquim Barbosa. Mostrou sua falta de tato, de cintura política, a intolerância a qualquer opinião contrária.
Ocorre que o mito Barbosa surgiu impulsionado pelo clima de radicalização, de criminalização da política, do denuncismo desvairado que a oposição levantou a partir de 2006 e, especialmente, a partir da era José Serra.
Trouxeram de volta para a cena política o macartismo, abusaram da religiosidade, despertaram os piores demônios existentes no tecido social brasileiro, aqueles que demonizam as leis e propõem o linchamento, transformaram a disputa política em um vale-tudo.
Não valia denunciar aparelhamento da máquina, a política econômica, apontar erros na gestão pública, como em qualquer disputa política civilizada.
Repetiram nos mínimos detalhes a radicalização da política norte-americana, o movimento da mídia e do Partido Republicano dos Estados Unidos adotando o discurso virulento de ultra-direita do Tea Party.
Durante toda a campanha eleitoral nos EUA, comentaristas vociferantes espalhavam toda espécie de boatos contra Barack Obama. A campanha viciou o eleitorado republicano nas catarses do Tea Party e o partido terminou refém da radicalização. Hoje em dia, as vozes mais preparadas e ponderadas dos republicanos têm enorme dificuldade em reconduzir o partido para o caminho da moderação e da responsabilidade política.
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Por aqui, caminha-se para o mesmo desfecho. Só que esse espaço catártico, que Serra preparou para ele próprio, foi ocupado por um jacobino autêntico. Serra era um simulacro de radical, Barbosa é um radical em estado bruto.
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Na semana passada, em visita a São Paulo, Aécio Neves relembrou figuras referenciais mais nobres do PSDB, como Mário Covas e Franco Montoro. Tenta, de alguma forma, recuperar os valores partidários, destroçados na era Serra.
O próprio Serra andou dando entrevistas minimizando a crise econômica, tentando (inutilmente) ocupar um espaço de racionalidade que um dia foi seu. Ou – o que é mais factível – tentando prejudicar o candidato que ocupou um lugar que era seu por direito divino.
2014 não está cheirando bem.


 

 







NÃO TEM QUADRILHA

STF CORRIGIU ERRO DE OITO ANOS

Derrubado no tribunal, crime de quadrilha era mencionado 53 vezes na denúncia de 2006

Paulo Moreira Leite, em seu blogue
 
Ao retirar a acusação de formação de quadrilha contra oito réus da AP 470, o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão relevante em múltiplos aspectos.
 
O primeiro ponto tem caráter moral: a verdade foi reestabelecida, ao menos parcialmente. 
 
A decisão corrige um erro de oito anos.
 
Em seu voto, o relator Luiz Fux ainda chegou a comparar o governo Lula e o PT aos  cangaceiros de Lampião, imagem usada para criminalizar um partido que governa o país – com imensa aprovação popular – desde 2003. 
Era uma visão que seguia a linha definida pelo primeiro procurador-geral Antônio Fernando de Souza que, na denúncia original, em 2006, empregou a palavra quadrilha 53 vezes contra os 40 réus.
Em 2012, no julgamento, a condenação por quadrilha teve duas consequências.
Pelo agravamento artificial das penas, as sentenças foram  um exercício de crueldade contra os réus e uma forma de propaganda política. Também arranharam o Direito e a Justiça, como denunciou, com voz serena, o relator Luiz Roberto Barroso, num voto que deu o tom dos debates da semana. Ele não só disse que a condenação por formação de quadrilha estava errada e não possuía fundamento.
Sustentou que fora aplicada fora de qualquer critério razoável, com a intenção clara de prejudicar os réus.  
 
"Considero, com todas as vênias de quem pense diferentemente, que houve uma exacerbação nas penas aplicadas de quadrilha ou bando. A causa da discrepância foi o impulso de superar a prescrição do crime de quadrilha e até de se modificar o regime inicial de cumprimento das penas", disse Barroso.
 
Preste atenção nesta afirmação, que é gravíssima. Barroso disse com todas as letras que “a causa da discrepância” entre o que se fez e o que deveria ter sido feito não se encontra na  vontade de punir um crime, nem de aplicar a legislação em vigor, nem mesmo uma incompreensão de algum ponto obscuro do Código Penal.
O que pesou foi uma decisão, inaceitável do ponto de vista da Justiça, e vergonhosa, do ponto de vista dos direitos de qualquer pessoa: conduzir os réus, de qualquer maneira, para o regime fechado.  Este “impulso,” disse o ministro, foi a  “causa da discrepância”.
 
Em outro momento, Barroso ainda afirmou, com uma ironia amarga:  "As penas de quadrilha foram quase uma correção monetária dos outros crimes, cujas penas não seriam da intensidade desejada pelo aplicador".
 
Para quem recorda as cenas da dosimetria, em 2012, é fácil entender o  que Barroso estava dizendo. Num espetáculo deprimente, era possível verificar que não se discutia a pena correta – mas aquela que permitisse o regime fechado, a condenação mais dura.
 
Conforme cálculo de Lewandovski, num estudo daquela época, e que teria um efeito duradouro nos debates que levaram a mudança da semana passada, esse agravamento artificial chegou a 63%, no caso de José Genoíno, e 75%, no caso de Dirceu, para ficar em dois exemplos. 
 
Apoiando-se nos cálculos complementares de outro ministro, Teori Zavaski, Barroso lembrou que o impacto destes agravamentos para um crime que sequer fora claramente demonstrado, chegou a "uma variação superior a 250% entre uma coisa e outra.”
 
Foi este absurdo que acabou desmontado na quinta-feira. Na minha opinião, o julgamento precisa sim ser revisto de forma integral, até para que os réus possam exercer um direito elementar, que é um segundo grau de jurisdição. Reunidos no inquérito 2474, provas e testemunhos relevantes foram mantidos em caráter sigiloso até hoje, numa decisão que causou imensos prejuízos aos réus e dificultou seu direito a uma ampla defesa. Mas a correção de uma injustiça, mesmo parcial, devolve a dignidade a toda pessoa. 
 
 
 

A DERROTA DOS REACIONÁRIOS

Um cheiro de cinzas no ar


Saul Leblon, na Agência Carta Maior



Como parte interessada, a mídia jamais reconhecerá no fato o seu alcance: mas talvez o Brasil tenha assistido nesta 5ª feira a uma das mais duras derrotas já sofridas pelo conservadorismo desde a redemocratização.

Quem perdeu não foi a ética, a lisura na coisa pública ou a justiça, como querem os derrotados.

A resistência conservadora a uma reforma política, que ao menos dificultasse o financiamento privado das campanhas eleitorais, evidencia que a pauta subjacente ao julgamento da AP 470 tem pouco a ver com o manual das virtudes alardeadas.

O que estava em jogo era ferir de morte o campo progressista

Não apenas os seus protagonistas e lideranças.

Mas sobretudo, uma agenda de resiliência  histórica infatigável, com a qual eles seriam identificados.

Ela foi golpeada impiedosamente em 54 e renasceu com um único tiro; foi golpeada em 1960 e renasceu em 1962; foi golpeada em 1964, renasceu em 1988; foi golpeada em 1989, renasceu em 2003; foi golpeada em 2005 e renasceu em 2006, em 2010...

O  que se pretendia desta vez, repita-se, não era exemplar cabeças coroadas do petismo, mas um propósito algo difuso, e todavia persistente, de colocar a luta pelo desenvolvimento como uma responsabilidade intransferível da democracia e do Estado brasileiro.

A derrota conservadora é  superlativa nesse sentido, a exemplo dos recursos por ela mobilizados --sabidamente nada  modestos.

Seu dispositivo midiático lidera a lista dos mais esfarrapados egressos da refrega histórica.

Se os bonitos manuais de redação valessem, o  desfecho da AP 470  obrigaria a mídia ‘isenta’ a regurgitar as florestas inteiras de celulose que consumiu com o objetivo de espetar no PT o epíteto eleitoral de ‘quadrilha’.

Demandaria uma lavagem de autocrítica.

Que ela não fará.

Tampouco reconhecerá que ao derrubar a acusação de quadrilha, os juízes que julgam com base nos autos desautorizariam implicitamente o uso indevido da teoria  do  domínio do fato, que amarrou toda uma narrativa largamente desprovida de provas.

Se não houve quadrilha, fica claro o propósito político prévio  de emoldurar a  cabeça  do ex-ministro José Dirceu no centro de uma bandeja eleitoral, cuja guarnição incluiria nomes ilustres do PT, arrolados ou não  na AP 470.

O banquete longamente preparado  será degustado de qualquer forma agora.
Mas fica difícil  afastar  a percepção de que o carnaval conservador saltou  direto da concentração para  a dispersão sem passar pela apoteose.

Aqui e ali, haverá quem arrote  peru nos camarotes e colunas da indignação seletiva.

O cheiro de cinzas, porém, é inconfundível e contaminará por muito tempo o ambiente político e econômico do conservadorismo.

O  que se pretendia, repita-se, não era apenas criminalizar fulano ou sicrano, mas a tentativa em curso de enfraquecer o enredo que os mercados impuseram ao país de forma estrita e abrangente no ciclo tucano dos anos 90.

Inclua-se aí a captura do Estado para sintonizar o país à modernidade de um capitalismo ancorado na subordinação irrestrita da economia, e na rendição incondicional da sociedade, à supremacia das finanças desreguladas.

O Brasil está longe de ter subvertido essa lógica.

Mas não por acaso, a cada três palavras que a ortodoxia pronuncia hoje, uma é para condenar as ameaças e tentativas de avanços nessa direção.

O jogral é conhecido: “tudo o que não é mercado é populismo; tudo o que não é mercado é corrupção; tudo o que não é mercado é inflacionário, é ineficiência, atraso e gastança”.

O eco desse martelete percorreu cada sessão do mais longo julgamento da história brasileira.

Assim como ele, a condenação da política pelas togas coléricas reverberava a contrapartida de um anátema econômico de igual veemência,  insistentemente  lembrado pelos analistas e consultores: “o Brasil não sabe crescer, o Brasil não vai crescer, o Brasil não pode crescer --a menos que retome  e conclua  as ‘reformas’”.

O eufemismo cifrado designa o assalto aos direitos trabalhistas; o desmonte das políticas sociais;  a deflagração de um novo ciclo de   privatizações e a renúncia irrestrita a políticas e tarifas de indução ao crescimento.

Não é possível equilibrar-se na posição vertical em cima de um palanque abraçado a essa agenda, que a operosa Casa das Garças turbina para Aécio --ou Campos, tanto faz.

Daí o empenho meticuloso dos punhais midiáticos em escalpelar os réus da AP 470.

Que legitimidade poderia ter um projeto alternativo de desenvolvimento identificado com uma  ‘quadrilha’ infiltrada no Estado brasileiro?

Foi essa indução que saiu  seriamente chamuscada da sessão do STF na tarde desta 5ª feira.

Os interesses econômicos e financeiros que a desfrutariam continuam vivos.

Que o diga a taxa de juro devolvida esta semana ao degrau de 10,75% , de onde a Presidenta Dilma a recebeu e do qual tentou rebaixá-la, sob  fogo cerrado da república rentista e do seu jornalismo especializado.

Sem desarmar a bomba de sucção financeira essas tentativas  tropeçarão ciclicamente  em si mesmas.

Os quase 6% que o  Estado brasileiro destina ao rentismo anualmente, na forma de juros da dívida pública, dificultam sobremaneira desarmar o círculo vicioso do endividamento, do qual eles são causa e decorrência. 

É o labirinto do agiota: juro sobre juro leva a mais juro. E mais alto.

Dessa encruzilhada se esboça a disputa entre  dois projetos distintos de desenvolvimento.

A colisão entre as duas dinâmicas fica mais evidente quando a taxa de crescimento declina ou ocorrem mudanças de ciclo na economia mundial, estreitando adicionalmente a margem de manobra do Estado e das contas externas.

É o que a América Latina, ou quase toda ela, experimenta  nesse momento.

A campanha eleitoral deste ano prestaria inestimável serviço ao discernimento da sociedade se desnudasse esse conflito objetivo, subjacente à  guerra travada diante dos holofotes no julgamento da AP 470.

O conservadorismo foi derrotado. Mas não perdeu seus arsenais.

Eles só serão desarmados pela força e o consentimento  reunidos das grandes mobilizações democráticas. 

As eleições de outubro poderiam funcionar como essa grande praça da apoteose.

A ver.