02 junho 2015

MAIS UM TÍTULO PARA O BRASIL

Os caras de pau-brasil



Mino Carta, na Revista CartaCapital




O mundo se curva, o Brasil docet, diriam os antigos romanos. Ensina, leciona de cátedra. Não somos por acaso o país do futebol, a pátria de chuteiras. Em matéria, há tempo deixamos de ser os reis da bola, somos, porém, imbatíveis no gramado da corrupção.
Tudo escancarado há mais de 40 anos, sem ser denunciado e punido. A imponente mazela perpetrada em todos os campos do futebol nativo, a falcatrua constante, o engodo feroz, são vergonhosamente ignorados até pela mídia, esportiva ou não, com raríssimas e digníssimas exceções. Quando não são secundados, ou mesmo incentivados.
Tudo começa, no plano internacional, com João Havelange, dono da Fifa desde 1974, e chega agora a José Maria Marin. Na origem e no desenvolvimento os protagonistas nativos campeiam, graças à inestimável contribuição, com efeitos determinantes no cenário nacional por uma época farta, de Ricardo Teixeira, antecessor de Marin, autoexilado, para salvar a pele, em Boca Raton, paradeiro de nome bastante persuasivo. Nem por isso, seguro, a esta altura do campeonato.
Criatura de Havelange, de quem já foi genro, Teixeira corre riscos até ontem inesperados: entrou no enredo o FBI, aquele que a gente se acostumou a ver triunfar na televisão, e Marin, finalmente alcançado na Suíça, uma vez deportado para os Estados Unidos, lá será julgado e condenado com o rigor de quem leva as coisas a sério. Parece que Teixeira caiu na brasa.
Não haverá um Gilmar Mendes ianque para tirar da enrascada os envolvidos na grande tramoia. Como se deu, só para citar um exemplo, com o banqueiro Daniel Dantas, alcançado pela Operação Satiagraha, preso duas vezes e duas vezes libertado pela intervenção de Mendes, capaz, aliás, de emperrar o funcionamento da Suprema Corte brasileira em proveito dos seus próprios objetivos públicos.
Há certo parentesco entre os casos, a se considerar que Dantas já foi condenado fora do País, em Nova York, em Cayman e em Londres, enquanto aqui na terrinha pode-se permitir viver à larga em perfeito sossego. Desde a clamorosa roubalheira-bandalheira da privatização das comunicações, o maior escândalo da história pátria, até o enterro da Satiagraha e o desterro do delegado Paulo Lacerda para Portugal.
Não recordo que por ocasião destes dois momentos da trajetória de Dantas a mídia nativa tenha entrado em ação para martelar diuturnamente em denúncias e acusações como se dá hoje em relação ao “petrolão”. Do período que vai da Operação Chacal à Satiagraha sobrou a constrangedora impressão de que o banqueiro do Opportunity vive em paz por ter todo mundo no bolso.
A diferença entre Marin, e quantos mais vierem atrás dele, e Dantas, é representada, em primeiro lugar, pela presença do FBI, sem contar que logo após virá a Justiça americana, e os EUA são muito severos em relação à lavagem de dinheiro dentro de suas fronteiras. Por ora, 
Joseph Blatter, o presidente da Fifa, e outros, estrangeiros e nacionais, todos herdeiros diretos ou indiretos de Havelange, escapam aparentemente à investigação do Federal Bureau. Não se excluam surpresas, contudo.
Faz duas semanas, CartaCapital dedicou uma capa à CBF de Marco Polo Del Nero. A Confederação queixou-se, alegou não ter sido procurada para dirimir nossas dúvidas, como se não estivéssemos largamente habilitados a imaginar quanto tería-
mos de ouvir. Retrucamos, de todo modo, que muito nos agradaria entrevistar o próprio presidente da entidade, com total liberdade para formular perguntas. Não houve resposta.
Sabemos que na terra brasilis, os donos de poder, em qualquer instância, são intérpretes insuperáveis de uma secular tradição de desfaçatez, prepotência e hipocrisia na certeza da impunidade por direito divino. São os caras de pau-brasil. O futebol, está claro, entre nós não é assunto de somenos, e algo intrigante é a razão por que, sempre a ficar em meros exemplos, as partidas noturnas tenham necessariamente de acontecer depois da novela da Globo. Ah, sim, a Globo... Quanto valerão tantas benesses que lhe foram concedidas?
E é possível que o governo federal, hoje representado por um ministro do Esporte inepto, não intervenha nos gramados da política do futebol, entregue a uma máfia de cartola? Permito-me lembrar que a seleção canarinho adentra aos gramados do mundo ao som do Hino Nacional. 

FIGURAS DE SEGUNDA CLASSE

A incivilidade gourmet


Luiz Gonzaga Belluzzo, na Revista CartaCapital






O ex-ministro da Fazenda Guido Mantegafoi, outra vez, hostilizado. Depois dos hospitais, as grosserias elegeram os restaurantes de São Paulo. Fâmulos da distopia da barbárie chic, os ofensores  atarraxaram a máscara da indignação para simular pertinência à vida civilizada. Em editorial publicado na terça-feira 26, a Folha de S.Paulo lamentou o “exagero” da hostilidade dirigida ao ex-ministro Guido. Ocorreu-me sugerir ao editorialista lamentar os “exageros” antissemitas de Adolph Hitler.
Esses espécimes confirmam diariamente a resposta do Mahatma Gandhi a um desavisado que desfraldou o estandarte da civilização ocidental diante de seus olhos: “A civilização ocidental teria sido uma boa ideia”.
A esse episódio de incivilidade gourmet agregam-se outros momentos de extasiada celebração do próprio mau gosto, tal como a manifestação do advogado Danilo Amaral. Arrogando-se o direito de patrulhar consciências, disparou impropérios contra o ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, responsável pela implantação do Programa Mais Médicos. Suspeito que o senhor Danilo Amaral esteja disposto a patrocinar o programa Menos Médicos.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o sociólogo espanhol Manuel Castells chegou a tempo de enfiar o dedo nas escancaradas escaras da sociedade brasileira. “O Brasil sempre foi agressivo... Nos tempos da ditadura, o debate não só era agressivo, como se torturavam pessoas com impunidade. A imagem mítica do brasileiro simpático só existe no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata.”
Para os leitores de Sérgio Buarque de Holanda, o sociólogo espanhol apenas redescobre as raízes da sociedade brasileira plantadas nos terraços da escravidão, entre a casa-grande e suas senzalas. Nesse espaço da sociabilidade à brasileira germinam os grãos que cevam as hipocrisias do “homem cordial”, avesso a regras e amigo da informalidade que consagra a lei do mais forte. O brasileiro “cordial” carrega em seu caráter as peculiaridades das relações de dominação que organizam a vida social no país do Carnaval, do futebol (decadente) e da sensualidade por demais exuberante para ser bem resolvida.
Diz Sérgio Buarque nas Raízes do Brasil que o pensamento liberal democrático pode ser resumido na frase de Bentham: “A maior felicidade para o maior número”. A isso se opõem os valores cordiais e oligárquicos. Sob a capa do afeto, o cordialismo esconde as crueldades da discriminação e da desigualdade. Rasgado o véu conveniente da benevolência, emerge da mansidão hipócrita a inclemente violência do mandonismo e da submissão: “O senhor sabe com quem está falando?” “Coloque-se no seu lugar.”
Os ululantes atacam nas ruas e nos restaurantes com as armas do preconceito, da intolerância e da apologia da brutalidade, sem falar nos atropelos à língua portuguesa. Veja o caro leitor que em restaurante de “uma região nobre de São Paulo”, um aspirante à nobreza dos bairros nobres bateu panela ao discutir o valor da conta com o garçom de restaurante: “Você não pode discutir comigo porque não fez faculdade”. E completou: “É por causa desses preguiçoso e analfabeto que o Brasil não vai pra frente”. Descontado erro grosseiro de concordância – “desses preguiçoso e analfabeto” –, sobrou a grotesca expressão “não fez faculdade”, típica do semianalfabeto com diploma de curso superior incapaz de perceber o tamanho de sua ignorância. A valorização do curso superior cumpre, hoje, a função discriminatória da era do bacharelismo: “No vício do bacharelismo”, dispara Sérgio Buarque, “ostenta-se também a tendência para exaltar acima de tudo nossa personalidade individual, como valor próprio, superior às contingências.”
Nos idos de 2015, os Senhores da Terra Brasilis e seus encapuçados capitães do mato entregam-se, mais uma vez, com o trovejar da fúria, aos trabalhos de revelar suas entranhas ao mundo. Na fétida exibição das tripas, a argumentação razoável cede passagem ao dedo indicador apontado para o adversário ou divergente. A personalidade autoritária que muitos sonhavam exercitar à esquerda encontrou seus espaços nos confortáveis e oportunos palanques da direita brasileira, hoje comandada por figuras de segunda classe. Exageros da cordial alma brasileira. 

PERDE-PERDE

Os riscos do vácuo de poder no Brasil


Luis Nassif, na Revista CartaCapital




Desde 1994 o poder, no Brasil, foi exercido por um duopólio: PSBD e PT. Com eles a Presidência da República conseguia unificar forças políticas e econômicas em torno de alguns consensos.
Através do Banco Central atendia-se às demandas de mercado; o presidencialismo de coalizão garantia o atendimento das demandas políticas; a estabilização de preços, primeiro, a inclusão social, depois, garantiam a legitimidade do Executivo.
Nem se considere que ambos os períodos foram virtuosos. No reinado do PSDB procedeu-se a um desmonte do Estado e a um crescimento exponencial da dívida pública. No reinado do PT manteve-se o câmbio apreciado, os juros elevados e afalta de um projeto de país.
Mas, em todo caso, em ambos os períodos se manteve a federação sob controle do Executivo, mesmo nas fases mais árduas, como no pós-maxidesvalorização cambial, do período FHC, ao julgamento do "mensalão", no período Lula.
O que se observa, agora, é um esgarçamento inédito do poder, não apenas da presidência, mas dos dois partidos que revezaram-se na hegemonia política.
A consequência é uma multiplicação de jogadas oportunistas, esbirros de poder atropelando normas, regulamentos sociais, jurídicos e políticos.
Há semelhanças e diferenças em relação a 1964.
As semelhanças estão na fraqueza da presidência da República, nos movimentos raivosos da classe média e nas indecisões de Jango e Dilma equilibrando-se em tentativas mal elaboradas de contentar a base ou o establishment.
As diferenças estão na falta de um Carlos Lacerda e um Leonel Brizola botando mais fogo no circo; na ausência de princípios claros na oposição. Mas, principalmente, na falta de um protagonismo militar.
De fato, a presidência de um país continental, como o Brasil, ou se sustenta na força ou nos programas. Ou é temida ou respeitada.
Quando a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, com base em provas frágeis, invadem a casa de um governador, principal aliado de Dilma Rousseff, ou quando implantam escutas no Palácio, sem se preocupar com as consequências, é porque rompeu-se definitivamente o fio que sustentava a autoridade presidencial.
Se não é temida, a autoridade presidencial também não é respeitada. A política foi terceirizada para o vice-presidente Michel Temer; a economia para Joaquim Levy. Não se vê um sinal mais concreto de preparação de uma agenda de desenvolvimento.
Cria-se o vácuo, então, no qual a ocupação do espaço político se dá na base do grito e das cotoveladas. Implanta-se a selvageria institucional, tendo como protagonistas personalidades do calibre de um Gilmar Mendes, Eduardo Cunha, Renan Calheiros.
No início, colocaram sob ameaça as conquistas civilizatórias na área dos direitos humanos. Agora, acenam com o próprio desmonte da unidade federativa brasileira, com a proposta de esvaziar a União em favor de estados e municípios.
A luta fratricida entre PT e PSDB é um perde-perde.
As duas principais lideranças das últimas décadas – Fernando Henrique Cardoso e Lula – são incapazes de articular propostas, unificar a base e colocar alguma ordem no seu terreiro.
FHC está cego pela oportunidade de liquidar com Lula, ainda que à custa do agravamento da crise. E Lula perde a cada dia o papel de interlocutor nacional, amarrado pela falta de propostas do PT e, principalmente, pela inação do governo Dilma.
Some-se a tudo isso políticas fiscal e monetária demolidoras, que ampliarão gravemente a recessão e o desemprego, e se terá um mapa do inferno pela frente.

 
 

MÍDIA PARTIDARIZADA

A crise e suas interpretações


Marcos Coimbra, na Revista CartaCapital




Quanto mal uma mídia partidarizada pode causar a um País? Que prejuízos a irresponsabilidade dos veículos de comunicação traz à sociedade?
No Brasil, essas não são perguntas acadêmicas. Ao contrário. Em nossa história, sobram exemplos de períodos em que a “grande imprensa”, movida por suas opções políticas, jogou contra os interesses da maioria da população. Apoiou ditaduras, avalizou políticas antipopulares, fingiu não ver os desmandos de aliados.
O instituto Vox Populi acaba de realizar uma pesquisa nacional sobre sentimentos e expectativas a respeito da economia. O levantamento deixa claro o preço que pagamos por ter a mídia que temos.
A pesquisa tratou principalmente de inflação e desemprego e mostra que a opinião pública vive um pesadelo. Olha com desconfiança o futuro, teme a perda de renda e emprego, prefere não consumir e não tem disposição de investir. Está com medo da “crise”.
Todos sabem quão importante é o papel das expectativas na vida econômica. Quando a maioria se convence de que as coisas não vão bem, seu comportamento tende a produzir aquilo que teme: a desaceleração da economia e a diminuição do investimento público. A “crise” é, em grande parte, provocada pelas expectativas.
O principal sucesso da mídia oposicionista na desconstrução da imagem do governo ocorreu no primeiro semestre de 2013, quando as pesquisas de opinião apontaram o salto das preocupações com o “descontrole da inflação”. Ali, a inflação crônica que conhecíamos desde o Plano Real foi transformada pela “grande imprensa” em aguda. Sem que a “inflação objetiva” mudasse, a “inflação subjetiva” foi acelerada.
Estampada em manchetes e com tratamento de luxo nos noticiários de tevê, a “crise econômica” estava na pauta dos meios de comunicação muito antes de se tornar uma preocupação real da sociedade. Há ao menos dois anos, é o principal assunto.
A nova pesquisa mostra que a quase totalidade dos brasileiros, depois de ser bombardeada durante tanto tempo com a noção de “crise”, perdeu a capacidade de enxergar com realismo a situação da economia.
A respeito da quantia imaginada para comprar, daqui a um mês, o que compram atualmente com 100 reais, apenas 2% dos entrevistados estimaram um valor próximo àquele. Os demais 98% desconfiam de que vão precisar de mais ou de muito mais. Desse total, 73% temem uma alta dos preços superior a 10%. Quase a metade, 47%, estima uma inflação acima de 20%. E não menos de 35% receiam que os preços subirão mais de 30% em um mês.
Convidados a raciocinar com o horizonte do fim deste ano, tivemos 1% de entrevistados seguros de que até lá os preços vão subir em média menos de 5%. Outro 1% estima uma alta entre 5% e 10%. Ou seja: a crer nas projeções para 2015 da inflação, 1% errou para menos, 1% acertou e 98% erraram para mais. E erraram desmesuradamente. Quase a metade se apavora com a perspectiva de uma inflação anual superior a 50%, e, destes, um terço fantasia uma inflação de 80%.
Os números sãos semelhantes nas análises do desemprego. Apenas 7% dos entrevistados sabem que hoje menos de dez indivíduos em cada cem estão desempregados. Cerca de um quarto acredita que o desemprego varie de 10% a 30% da força de trabalho e 38% imaginam que a proporção de brasileiros sem emprego ultrapassa os 40%.
Por esse raciocínio, o cenário até o fim do ano seria dantesco: quase 40% acreditam que o desemprego em dezembro punirá mais da metade da população ativa.
Para tanta desinformação e medo do futuro, muitos fatores contribuem. Nossa cultura explica parte desses temores. Os erros do governo, especialmente de comunicação, são responsáveis por outra. Mas a maior responsável é a mídia hegemônica.
Ninguém defende que a população seja mantida na ignorância em relação aos problemas reais enfrentados pela economia. Mas vemos outra coisa. A mídia deseduca ao deformar a realidade e por nada fazer para seus leitores e espectadores desenvolverem uma visão realista e informada do País. Fabrica assustados para produzir insatisfeitos.
Com isso, torna-se agente do agravamento de uma crise que estimulou e continua a estimular, apesar de seu custo para as famílias e para o Brasil.
 
 
 

REPÓRTERES "OBEDIENTES"

Quando o repórter mostra que o rei está nu


Sylvia Debossan Moretzsohn, no Observatório da Imprensa



A versão oficial sobre o atentado no Riocentro, em 1981, foi desmascarada imediatamente por um esforço de reportagem. A equipe do Jornal do Brasil que cobria o caso reconstituiu a cena e demonstrou que não havia a menor possibilidade de existir uma bomba na parte interna da porta do Puma em que estavam o sargento e o capitão atingidos pela explosão: naquele tipo de carro não havia espaço entre a porta e o banco, onde, de fato, o sargento armava uma bomba, que acidentalmente explodiu no seu colo. Ele morreu, o capitão ficou gravemente ferido mas sobreviveu, teve as promoções de praxe e está vivo até hoje.
Estávamos ainda sob ditadura, sofrendo as ações de grupos que o general Ernesto Geisel classificou como “bolsões sinceros, mas radicais”, os militares da linha dura que confrontavam a política da abertura “lenta, gradual e segura” e que continuaram a atuar durante o governo João Figueiredo. A investida no Riocentro, no show do 1º de Maio, seria a mais ousada até então e, se bem sucedida, teria provocado uma tragédia.
A versão oficial perdurou durante muito tempo, mas jamais convenceu ninguém, e o JB, que pela reportagem ganhou o Prêmio Esso principal daquele ano, contribuiu decisivamente para mostrar que o rei estava nu.
Esforços de reportagem assim são cada vez mais raros nesses tempos em que o jornalismo se submete a uma rotina que se rende aos releases das assessorias de imprensa e à palavra das autoridades. Mas existem, e o exemplo mais recente foi dado por Aydano André Motta, na coluna “Panorama Carioca”, do Globo de sábado (30/5, ver aqui). Duvidando da versão oficial sobre o assassinato do médico Jaime Gold – morto a facadas em 20/5, quando pedalava, no início da noite, pela Lagoa Rodrigo de Freitas –, em que o delegado responsável dava o caso como encerrado e citava o depoimento de uma testemunha que teria reconhecido o autor do crime, o jornalista tomou uma providência elementar: mais ou menos no mesmo horário, foi até o local em que a testemunha trabalha – um posto de gasolina, que, como ressaltou, “não fica em frente ao local exato do crime, mas numa diagonal” – e de lá, com seu celular, fotografou a partir do ângulo de visão do frentista.
 
Foto: Aydano André Motta
Foto: Aydano André Motta
A distância de quatro pistas de trânsito, mais o canteiro central, e a precária iluminação demonstram a absoluta impossibilidade de alguém reconhecer quem quer que seja naquela situação. Mais ainda se o médico estivesse pedalando na direção do Túnel Rebouças, como é o mais provável: nesse caso, quem o atacou estaria de costas para a testemunha que o teria identificado.
Repórteres “obedientes”
Reportagens são feitas de dúvidas que geram perguntas, frequentemente incômodas: além de esclarecer o trajeto que o médico fazia, seria preciso indagar – como faz Aydano em se Impu artigo – como é possível que o suposto assassino tenha pedalado da Lagoa até a favela do Jacarezinho, na Zona Norte, passando por bairros da Zona Sul como Humaitá, Botafogo, Flamengo e pelo Centro: como é possível que não tenham identificado até agora qualquer imagem “de um jovem numa bicicleta caríssima, nas centenas de câmeras em operação pelo longo caminho”.
O artigo põe a dúvida que deveria ter orientado o trabalho de reportagem desde o início. Por que não foi assim? Em parte, certamente, pela orientação editorial do jornal, que destacou a morte do médico no alto da primeira página e lhe dedicou nada menos do que cinco páginas internas, além de aproveitar para reiterar, em editorial, a defesa da redução da maioridade penal. Se houvesse interesse em investigar, provavelmente uma das primeiras providências teria sido esta que o colunista tomou.
Mas a esse motivo ideológico se associa outro, que diz respeito às rotinas profissionais adotadas nas empresas jornalísticas de modo geral. Como tantos jornalistas experientes, Aydano diz que os repórteres, em todas elas, vêm se tornando “obedientes”: não ousam mais, contestam pouco. “Lembro que o [José Mariano] Beltrame [secretário de Segurança] não divulgou o nome do soldado que matou aquele garoto no Alemão [o menino Eduardo de Jesus Ferreira, em abril deste ano]. E até hoje ninguém sabe o nome dele”, afirma. Mas reconhece que isso ocorre também por causa das condições de trabalho no jornalismo atual: se um repórter tem três, quatro pautas para cumprir por dia, é muito difícil fugir a essa regra.
Por ter trabalhado na reportagem de cidade durante praticamente toda a carreira, Aydano também cobriu alguns casos de polícia e diz que uma frase do ex-delegado Hélio Luz, chefe da Polícia Civil entre 1995 e 1997, o assombra até hoje: “Foi quando ele me disse que a gente tem a polícia que quer ter”. Por isso é tão fácil pegar o primeiro jovem negro para culpá-lo do crime, ainda mais se esse jovem tem tantas passagens pelo “sistema”.
Sobre a situação específica da Lagoa, diz que o local, embora turístico, tem segurança precária por causa de sua configuração específica: “É uma região que passa por três batalhões [da Polícia Militar] diferentes, então não é de batalhão nenhum: um empurra para o outro a responsabilidade”. Diante de um crime de grande repercussão como este, reforça-se o policiamento, que tende a afrouxar conforme o tempo passa, até que outra tragédia aconteça.
O sistema que sustentamos
O artigo circulou amplamente pela internet e recebeu muitos comentários elogiosos, que também criticavam a precipitação da polícia. Um deles condenava a pressa “da polícia e de parte considerável e marrom da imprensa, que por sua vez alimenta uma pressa de suposta origem na sociedade”, pela qual “ficamos sem justiça”, pois “um assassino pode continuar solto, desde que achemos que está preso; um inocente (em relação ao crime específico pelo qual é condenado) pode ser e continuar preso, desde que ‘se pareça com um bandido’. É esse o sistema que queremos? Se não for, por que o sustentamos?”.
Entre profissionais do direito, houve quem apontasse na declaração do secretário Beltrame, logo após a notícia do assassinato – “É inadmissível um crime como esse na Lagoa” – a origem da urgência na tentativa de dar o caso como encerrado, pegando o primeiro suspeito verossímil. Outra crítica é ao reconhecimento através de fotografia. “Existem regras para o reconhecimento pessoal no Código de Processo Penal”, comentou a desembargadora Simone Schreiber. “O sistema é aquele que vemos em filmes americanos: enfileirar pessoas com o mesmo biótipo atrás de um vidro espelhado. Antes a vítima ou testemunha tem que descrever o suspeito. Mas como as polícias não investem em salas de reconhecimento, simplesmente se flexibiliza a lei.”
O coelho e a tartaruga
No texto em que demonstra a nudez do rei, Aydano diz que a investigação sobre o assassinato do médico “patina numa sucessão inacreditável de trapalhadas, que conjuga imperícia, açodamento e vaidade”. Uma das contradições é que a testemunha teria dito que um dos assaltantes era branco, enquanto os dois suspeitos presos são negros. Outra se revela nos comentários, depois apagados, que a delegada da 14ª DP, responsável pela região onde ocorreu o crime, fez numa rede social, questionando a condução das investigações:
“‘(A testemunha) disse que não tinha condições de reconhecer (os responsáveis). No dia seguinte, já em outra DP [a Delegacia de Homicídios] (…) reconheceu (um dos jovens) em fotos. Pois é, ele (adolescente reconhecido pela testemunha) não foi pego na noite (do crime). A tal testemunha foi ouvida (por policiais da 14ª DP na noite do assassinato) e não tinha condições de reconhecer ninguém. Enfim… Segue o baile…’”.
Na abertura do artigo, o jornalista lembra de uma famosa piada sobre a eficiência dos investigadores do FBI e da Scotland Yard em comparação aos métodos dos policiais brasileiros. Trata-se de uma disputa sobre quem encontraria mais rápido um coelho num bosque. O policial brasileiro consegue a façanha, mas apresenta uma tartaruga, cheia de escoriações, que não pára de berrar: “Eu sou um coelho! Eu sou um coelho!”.
Aydano retoma a imagem da piada na conclusão:
“Pelo bem do Rio de Janeiro, crimes famosos e anônimos, contra ricos, pobres e remediados precisam ser esclarecidos, para que a Justiça possa prevalecer. O que jamais acontece com tartarugas no lugar de coelhos”.
Acrescentaria depois: pelo bem do jornalismo, inclusive.
Ironicamente, a coluna que desmonta a versão oficial sobre o crime foi editada ao lado de um enorme release da Prefeitura disfarçado de reportagem, com o selo “Rio 2016”, sobre as providências do programa “asfalto olímpico”, de recuperação das esburacadas ruas da cidade.
Coisas do Globo.
Leia também
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
 
 
 

NEGAÇÃO DO CONTRADITÓRIO

O 'clamor' alimentado pela imprensa


Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa



Muito frequentemente, leitores de jornais questionam este observador sobre as razões pelas quais a mídia tradicional do Brasil perdeu diversidade e adotou nos últimos anos um viés tão radicalmente conservador e tão homogêneo que chega a se caracterizar como um verdadeiro partido político. A resposta nunca é simples, mas a própria imprensa oferece exemplos que ajudam a entender como se deu esse processo de perda de qualidade e degeneração da atividade jornalística.
Por exemplo, sabe-se que a imprensa, como sistema, tem um alinhamento automático com o campo ideológico que se denomina “liberal”, no que se refere às questões da economia, o que corresponde a escolhas que devem ser qualificadas como reacionárias no campo social. Reacionárias porque reagem vigorosamente a qualquer intervenção direta do Estado no sentido de corrigir as perversidades do sistema capitalista para produzir um mínimo de equanimidade nas oportunidades de promoção social dos indivíduos.
Assim, esse conjunto de empresas que catalisa pensadores e ativistas como instrumentos de influência e poder vive essa contradição que, de certa forma, reproduz as discrepâncias do próprio sistema capitalista. Por exemplo, a imprensa precisa se apresentar como uma espécie de farol da modernidade, porque isso justifica sua existência, mas se comporta mais frequentemente como uma lanterna na popa, mais apta a iluminar o passado, reescrevendo a História, do que ajudando a entender o que vem pela frente.
Numa sociedade complexa como a brasileira, onde a dinâmica das relações sociais e de negócios não encontra no campo político uma representação correlata, as escolhas da imprensa acabam por distorcer o equilíbrio entre as opções ideológicas, dando maior peso às alternativas conservadoras.
Isso fica muito claro quando notamos que a mídia tradicional despreza certos protagonistas da cena política, por considerá-los menos qualificados, mas se vale deles como a “mão do gato” para alcançar determinados propósitos.
Na terça-feira (2/6), por exemplo, registre-se como, novamente, os jornais dão grande destaque, sem o devido senso crítico, a iniciativas dos líderes do Congresso Nacional, que estão empenhados em fazer aprovar uma série de propostas que produzem retrocessos em conquistas sociais importantes da democracia brasileira.
Negação do contraditório
Estimulados pela constante exibição nas primeiras páginas dos jornais e pelo tempo que lhes é destinado nos noticiários do rádio e da televisão, o senador Renan Calheiros e o deputado Eduardo Cunha mantêm um aceso conflito com o poder Executivo, dando curso a mudanças em questões há muito acomodadas no quadro legal.
A proposta da redução da maioridade penal entra em pauta nesse contexto de confrontação, e em seguida é colocado na agenda um projeto que altera o equilíbrio dos poderes, transferindo para o Parlamento funções de gestão das empresas estatais.
Nessa linha de iniciativas, aguarda na fila um projeto de lei que pretende transformar em letra morta o sistema de controle da circulação de armas de fogo, restrição que é apontada por especialistas como uma das principais causas da redução de mortes violentas no país nas duas últimas décadas.
Propostas como essas avançam e conquistam a opinião de cidadãos pouco educados politicamente, justamente porque a imprensa não faz o trabalho de elucidar problemas complexos que preocupam a sociedade.
A desinformação, produzida pela prática das aleivosias e da meia-verdade na rotina da mídia, resulta em opiniões radicais sobre questões sociais, como a defesa do encarceramento de adolescentes e o apoio crescente à pena de morte. Por trás de tudo, como justificativa para esses retrocessos, acena-se com o que se denomina de “clamor popular”.
O tal “clamor” nasce quase sempre do mau jornalismo, como no caso de um jovem acusado do assassinato do médico Jaime Gold, no Rio de Janeiro, e que se demonstrou ser inocente.
Em editorial no qual apoia veladamente a proposta de mudança na regra da maioridade penal, oGlobo se refere a uma suposta “rigidez paternalista” do Estatuto da Criança e do Adolescente e afirma que há “um compreensível clamor por mudanças, ideologias à parte”. Com esses argumentos, defende a consulta popular porque o assunto seria “de fácil compreensão geral”.
Primeiro, a expressão “ideologias à parte” é uma negação do contraditório, fundamento da sociedade moderna. Segundo, o que o jornal qualifica de “clamor por mudanças” é apenas o resultado da ação cotidiana da própria imprensa em sua pregação reacionária. Terceiro, a “fácil compreensão” é o efeito do noticiário que criminaliza crianças e adolescentes negros e pardos, aos quais é negada qualquer oportunidade de inclusão social.