28 março 2016

UM POUCO DA HISTÓRIA

Brasil, capital Curitiba

Lula ministro leva o complô e a incitação à desordem ao paroxismo

Mino Carta, na Revista CartaCapital


Evaristo Sa/AFP
Lula-e-Dilma
Lula e Dilma tomam a decisão mais corajosa e arriscada das suas vidas políticas


Meu caro e velho amigo Luiz Inácio Lula da Silva, com quem falo amiúde pelo telefone e pessoalmente, entende que da negação da política, objetivo do complô urdido contra Dilma, o PT e ele mesmo, surgirão os arrivistas à Berlusconi, como se deu na Itália depois da Operação Mani Pulite.
Na minha visão, a comparação está errada, bem como está quem vê semelhanças com o advento do fascismo e do nazismo. O Brasil é único na moldura do mundo contemporâneo. Trafegamos entre a Idade da Pedra e a Idade Média.
Fascismo e nazismo foram deflagrados contra a democracia. Contra o Estado de Direito e as instituições que lhe são próprias. Nós vivemos de aparências. De fato, as instituições não funcionam e o Estado de Direito inexiste.
À implantação estável de uma democracia autêntica está longe de bastar a realização de eleições periódicas. A ameaça do golpe vibra sempre no ar em um país onde casa-grande e senzala permanecem de pé e aquela sempre aspira a uma democracia sem povo.
Brasil, capital Curitiba, e daqui, epicentro do complô, saem as diretrizes e as motivações da operação golpista. Atingimos agora a fase aguda da incitação à desordem, para o carnaval dos burguesotes enraivecidos e espanto e desalento dos cidadãos sensatos. Desta situação não emergem tanto Berlusconi quanto Hitler e Mussolini. Nasce o caos.
Considerem as tradições, e nem vale procurar muito longe. O golpe de 1964 foi desferido com a pretensão de salvar a democracia. Aquilo que foi chamado de revolução cuidou de manter um simulacro democrático ao reabrir o Congresso, composto por dois partidos surgidos para confirmar a hipocrisia atávica. Conseguíamos ser únicos, na comparação com Argentina, Chile e Uruguai, vítimas também do golpe inspirado pelos Estados Unidos, prontos também a prestar ajuda material.
Reconheça-se a presença naqueles dias turvos de figuras dignas, na frente o doutor Ulysses, capaz de reunir debaixo da bandeira emedebista todas as resistências à ditadura, de uma irônica anticandidatura quando da “eleição” de Ernesto Geisel e, ao cabo, de comandar as Diretas Já. Vingaram, porém, as indiretas, e redemocratização rima com enganação. Só o governo Lula marcou uma mudança notável, graças a inéditas políticas sociais e de uma política internacional de insólita independência.
Regredimos progressivamente e a perspectiva é o caos. Haverá quem suponha que umPaulo Skaf qualquer, que patrocina antecipadamente as suas festas ao incentivar as manifestações diante do edifício assírio-babilônico da Fiesp na Avenida Paulista, ou um pueril juiz de província alçado a salvador da pátria, representam o dia de amanhã para os buzinados e os paneleiros moradores, frequentemente, de residências bem maiores que o do triplex da praia dos farofeiros.
Manifestação
Ainda há quem saiba quem é Sergio Moro (Foto: Charles Sholl/Estadão Conteúdo)
Disso tudo resulta, pela primeira vez na história brasileira, o risco monstruoso do marasmo na terra de ninguém. Há 39 anos enxergo em Lula a única liderança popular deste país único, na sua imaturidade e ignorância. Na resignação do povo e na prepotência da casa-grande. Na incapacidade da maioria de escapar à pregação midiática para formular sua própria ideia. São estes os brasileiros negados à compreensão de que Lula no governo representa a última esperança de evitar o pior. Não somente para ele próprio e o governo, para todos nós.
O ex-metalúrgico que perdeu três eleições à Presidência da República para ganhar a quarta, reeleger-se e deixar o governo com cerca de 90% de aprovação popular, tomou na manhã de quarta 16 a decisão mais corajosa de toda a sua vida política. O caminho à frente para o novo chefe da Casa Civil da presidenta Dilma Rousseff, de verdade destinado a um papel mais importante do que de hábito reservado à pasta, será certamente muito acidentado, vincado pela incerteza.
A reação enfurecida dos militantes do complô diz que Lula quis simplesmente evitar a prisão e tira disto argumentos para sustar sua atuação como ministro-chefe da Casa Civil. Dilma, ao chamar Lula, não escondeu seu primeiro propósito, mas neste embate cada qual combate com as armas possíveis.
Lula sabe, entretanto, que sua tarefa vai muito além da autodefesa. Há quem lhe atribua qualidades milagreiras, a serpentear nas entranhas da terra nordestina. Certo é que sua liderança é inegável.
Disse-me ele, pelo telefone grampeado, que o primeiro problema a ser enfrentado é a crise econômica. Suas ideias a respeito são conhecidas. Crescimento é a saída. Daí a necessidade de encontrar recursos para investimentos rápidos, assunto de uma reunião já agendada para a sexta 18, ou segunda 21, com a presidenta e o ministro Nelson Barbosa. Ideal keynesiano, um new deal adaptado às circunstâncias e ao volume de dinheiro disponível.
Diretas-Já
Outra foi a razão do comício das Diretas Já, mais um digno capítulo da história do doutor Ulysses (Foto: Rolando Freitas e Sérgio Amaral)
Seria um bom começo. Essa agenda, contudo, há de ser volumosa como uma Bíblia, para salvar um projeto de governo, devolver Dilma às promessas eleitorais e, desde logo, impedir o impeachment. O caminho se afigura especialmente íngreme. Não me surpreende, de todo modo, a serenidade que Lula conserva em meio à tempestade, como se deu quando na dita “condução coercitiva”, operação anticonstitucional e de inaudita violência executada por 200 policiais armados até os dentes.
A transcrição do depoimento de Lula no Aeroporto de Congonhas, deveria, a bem de uma plateia arguta, ser transformada em peça do teatro do absurdo, entregue à pena de Ionesco ou de Beckett. Tudo indica que o inquisidor espera por Godot, chega, porém, Lula e o ridiculariza. Com extrema sutileza, que a mídia não registra e o inquisidor não percebe. 
Não falta quem, escriba dos jornalões, aluda aos palavrões com que o depoente recheou algumas de suas respostas, e clame contra a “baixaria” digna de um botequim. A linguagem icástica do ex-metalúrgico não haveria de chocar em um país cuja elite prima pela vulgaridade, traço comum dos moradores da casa-grande e dos aspirantes aboletados no sótão.
Estão nessas páginas passagens fartas a merecer a hilaridade, sem contar a inutilidade cômica das perguntas sobre o funcionamento dos Instituto Lula ou sobre o trabalho de lobista desenvolvidos por Lula na qualidade de presidente da República, a favor de obras de empresas brasileiras no exterior. Sustenta o delegado inquisidor estar apenas em busca da verdade. Responde o interrogado: se for atrás da verdade, mande prender quem diz que o apartamento é meu.
O delegado evoca a delação premiada de Fernando Baiano: afirmou ter ouvido que um amigo do ex-presidente, José Carlos Bumlai, deu 2 milhões de reais à nora de Lula. E o interrogado, impassível: tenho quatro noras e gostaria de saber onde acabou este dinheiro. E o delegado: por que, ao assumir a Presidência, em 2003, Lula trocou a diretoria da Petrobras.
O interrogado: era tudo tucano, um deles foi trabalhar com Eike Batista e o afundou. E sobre as doações do Instituto, Lula acentua que certa empresa deu o dobro a Fernando Henrique. Enfim, constata que ninguém dá dinheiro sem ser solicitado, até o dízimo não é espontâneo, “se o pastor não pede, o cristão vira as costas e vai embora”.
Em duas oportunidades, Lula diz do seu desapontamento sem alterar o tom: “Eu ando muito p. da vida porque a falta de respeito e a cretinice comigo passaram da conta”. E ainda: “Espero que, quando tudo isso terminar, alguém peça desculpas, que alguém fale ‘desculpa, pelo amor de Deus’”.
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As semelhanças apavorantes entre a marcha de 1964 e o desfile de 2016 (Foto: Estadão Conteúdo e Miguel Schincariol/AFP)
Uma pesquisa Datafolha relata que mais de 70% dos entrevistados aprovam a violência praticada pela polícia contra Lula, na sexta 4. Onde sobraram os brasileiros que foram beneficiados durante a Presidência do ex-metalúrgico?
Talvez o habitante do limbo careça de memória. Este é, porém, traço comum à maioria. Tal a chave de entendimento dos eventos dos dias de hoje, ao menos uma das razões. Permito-me andar na contramão.
Faz 52 anos, 19 de março de 1964, postei-me na esquina da Rua Marconi com Barão de Itapetininga para ver passar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Era aquele um dos pontos elegantes de São Paulo, a Livraria Brasiliense de Caio Prado ficava por perto, em frente a uma galeria de arte, um Fasano que servia chá ao som de violinos, lojas como Vogue, Madame Rosita, Old England.
Calçadas apinhadas, um helicóptero sobrevoava a área. Entalado no espaço exíguo, o volumoso governador Adhemar de Barros seguia do alto a manifestação, enquanto desfiava um terço sempre extraído do bolso do colete nas oportunidades convenientes. E a caravana passou na direção de um Bósforo espraiado entre o Mappin Stores e o Theatro Municipal, inspirado no Olympia parisiense.
Vinham na frente os inconfundíveis quatrocentões, sócios do Clube Harmonia, mesclados a alguns ousados carcamanos e turcos endinheirados, e a uma turba de fâmulos, camareiras, cozinheiras, mordomos, jardineiros, motoristas, creio não faltassem os pedicuros. Eram seguidos pelos sócios do Paulistano, um degrau abaixo nas escala da aristocracia paulistana, com a provável ausência de mordomos e pedicuros.
Decrescia, assim, aos poucos, a projeção social dos marchadores, todos trajados, porém, à altura do evento, cavalheiros de terno e gravata, muitas damas de tailleur, algumas de chapéu. Falou-se em 500 mil pessoas, como, segundo a Folha de S.Paulo, se deu domingo 13 de março de 2016 e declamou na primeira página do Estadão, estampada a data sobre a foto da maré humana.
Falou-se em 500 mil também por ocasião do comício das Diretas Já, em janeiro de 1984, e aquele, sim, foi um evento empolgante, exemplo de bravura no desafio à ditadura. Ao cabo da manifestação, grupos de participantes caçaram a reportagem da Globo, a se esmerar na condenação do movimento, e um veículo da emissora foi incendiado na Avenida Paulista.
Prova de coragem ainda maior aconteceu quando do culto ecumênico realizado na Catedral da Sé, no sétimo dia da morte de Vlado Herzog, assassinado pelos torturadores da masmorra da Rua Tutoia. Era 31 de outubro de 1975.
Exército tentou bloquear os caminhos de acesso à Sé e dispôs atiradores de elite nas janelas dos prédios em torno da praça, canos de rifles e metralhadoras riscavam sombras oblíquas sobre as fachadas. A missa atendia à convocação do cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns e contava com a pronta adesão do rabino Sobel e do pastor Wright. Quinze mil cidadãos desassombrados lotaram a catedral.
Outro gênero de brasileiros, bem diferente daqueles que marcharam em 64 e desfilaram no domingo 13 e também da moçada de cara pintada aglomerada para celebrar a renúncia de Fernando Collor empurrada pela mesma Globo que o elegera, com a extraordinária contribuição da revista Veja, em cuja redação nasceu a definição “caçador de marajás”.
Paulo-Skaf
Skaf sonha ser o Berlusconi nativo e celebra antecipadamente (Foto: Ayrton Vignola)
Já então declaravam o pretenso combate à corrupção aqueles que a praticam impunemente. Aliás, já disse e repito agora: Collor não cairia não fosse a revista IstoÉ para descobrir a ligação entre a Casa da Dinda e o Palácio do Planalto. Na época comandava a sucursal de Brasília João Santana, hoje preso pela Lava Jato.
A corrupção no Brasil é endêmica, está arraigada no ânimo de um país predado pelos colonizadores, subjugado pelos interesses dos impérios, antes inglês, depois americano, entregue à lei do mais forte, dado à propina, tanto como autor quanto como receptor.
Somos campeões, no dia a dia, no golpe baixo, no passa-moleque, no “levar vantagem”, na trapaça miúda e graúda. Vale perguntar aos nossos botões quanto gastou a Fiesp de inúmeros empresários que preferem ser rentistas em lugar de produtores de bens e serviços para financiar, ao menos em parte conspícua, o desfile do domingo 13. Esta também é uma forma de corrupção.
Favorecidos pelo Fisco que os coloca em pé de igualdade com pobres e remediados, e ainda prontos a comprar o fiscal, os senhores não se emendam porque não precisam. Cuidam, porém, do seu desenho maior, acabar com Dilma, o PT e qualquer veleidade de retorno de Lula. Supõem da sua conveniência estimular a tábula rasa da política para propor como herói Sergio Moro, quem sabe Cássio Conserino, aquele que confunde Hegel com Engels.
A tragicomédia de 64 assume agora duas tonalidades distintas. Seja de ópera-bufa em muitos lances, inclusive nas inconsistentes acusações dirigidas contra Lula. Seja de pura tragédia ao desvendar a possibilidade do seu resultado final: o caos.
Além dos previsíveis bonecos de Lula e Dilma devidamente caracterizados, dos cartazes e faixas carregados de ódio, muitos vieram com filhos e babás, sem descuidar de geladeirinhas portáteis para se abastecer de guaraná, cerveja e até champanhe.
Inúmeros envergam a camisa amarela da CBF, antro de corrupção, de João Havelange, grão-mestre dos seus sucessores na Fifa, a Ricardo Teixeira, de Marin a Del Nero, sem excluir Neymar, a esperança coral de ouros e taças pelos gramados do mundo.
Mas no país privado de Estado de Direito, corruptores e corruptos do tamanho, por exemplo, de Paulo Maluf e Daniel Dantas, precisam ser condenados no estrangeiro para ser atingidos pelo castigo que merecem. Aqui vivem à larga.
Em relação a 64, um fato muito positivo, sinal de progresso em meio ao desbragamento geral. Dois colunistas globais, Merval Pereira e Ricardo Noblat, prontificam-se a insinuar que as Forças Armadas se dispõem a rechaçar as milícias petistas, em caso de distúrbios. Denunciam suas esperanças e as dos seus patrões.
Um documento assinado pelo general Otávio do Rêgo Barros, do Centro de Comunicação Social do Exército, logo esclarece: “Quando empregamos tropas em eventos de pacificação ou de garantia da lei e da ordem, a determinação nos é dada por meio da Presidência da República”.
Em entrevista ao jornal Valor, o general Otávio disse mais: “É essencial que as Forças Armadas, até pela credibilidade que têm, tenham papel completamente institucional e de Estado. Consideramos muito importante que a instituição fique pairando acima de qualquer viés ideológico”.
A postura constitucional das Forças Armadas diante da crise neste momento conforta, bem ao contrário do que ocorre em relação à Suprema Corte de um país único e negativamente peculiar.



SÃO OS MESMOS

A reinvenção do golpe


Mino Carta, na Revista CartaCapital





Nicole Presotto
Protesto-a-favor-de-Lula-e-Dilma
A moçada que desfilou em São Paulo na sexta-feira 18 foi com as ideias claras

Ensaia-se um novo, inédito modelo de golpe de Estado e os impávidos inovadores mostram a cara. De Sergio Moro e Gilmar Mendes aJosé Serra e Fernando Henrique Cardoso. Da Globo, jornalões e revistões a Eduardo Cunha. Da facção peemedebista em busca da rasteira mais eficaz nos aliados a risco ao vice-presidente Michel Temer, que já conta as favas e monta o futuro governo.
O golpe de Estado não é incomum na história brasileira. De um golpe nasceu a República. Uns não passaram do ensaio, outros deram certo. Depois do suicídio de Getúlio Vargas, houve duas tentativas fracassadas antes de 1964, e por este pagamos até hoje. A rigor, houve golpe inclusive na posse de José Sarney, o vice que foi para o trono antes que o falecido titular o ocupasse. No caso, pode-se falar em usurpação.
A origem é sempre a mesma, a casa-grande ainda de pé, o nosso establishment medieval, exemplar único no mundo contemporâneo que se apresenta como civilizado e democrático. Não cabe rotular os mandantes à luz das ideologias tradicionais, dizê-los de direita, conservadores, reacionários não exprime sua autêntica natureza. Agem como se fossem investidos pelo direito divino, embora se dignem a formular elevadas motivações para justificar sua prepotência, até anteontem amparada na convocação dos militares para executar o serviço sujo. Outrora chamavam os jagunços. O tanque, contudo, é mais moderno e impõe maior respeito.
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O Brasil não o elegeu, foi ele, escravo da sua obsessão, quem elegeu o Brasil (Foto: Jefferson Bernardes/AFP)
O golpe de 64 foi desfechado para salvar a democracia e resolver a crise econômica. Agora um golpe judicial-policial-midiático sem tanques na rua arvora-se a salvar o País da praga petista e, como então, resolver a crise econômica. Trata-se de eliminar o estorvo eleitoral para atender à pesquisa de opinião que aponta o desfavor popular em relação ao governo, e talvez fosse do interesse do mundo curvar-se diante de mais uma fórmula criada pela genialidade brasileira. Com isso, igual a 64, vai a pique é a democracia. Nas barbas da lei, derruba-se Dilma, prende-se Lula e o PT soçobra natural e automaticamente.
Em lugar dos soldados, entram em cena agentes da polícia. Uma Justiça politizada e um Legislativo guiado na sagrada missão do impeachment por um notório corrupto acuam o Executivo ao sabor de uma enxurrada de acusações a serem provadas, veiculadas com o estardalhaço de declarações de guerra pela mídia do pensamento único. Em benefício da trama, de Curitiba um juiz de primeira instância cuida de ameaçar de prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao alegar razões absolutamente inconsistentes.
Neste caldo de cultura move-se a urdidura golpista, amparada em pesquisas destinadas a demonstrar a imaturidade de uma classe média (média até hoje não entendo por quê) ignorante, vulgar e arrogante, e de quantos, sonhadores de ascensão social, acreditam em uma encenação midiática nutrida de invencionices e mentiras, empenhada em transformar suposições em verdade factual. Como sempre, a casa-grande aposta na resignação da senzala.
As manifestações da sexta 18 a favor do governo e de Lula dizem, porém, da presença de um contingente conspícuo de cidadãos de olhos abertos e fé intacta. O ex-presidente, que compareceu à passeata paulistana, teve bons motivos para se comover “com o carinho do povo”, como ele próprio diz ao acentuar a presença preponderante dos jovens que nele enxergam o líder.
Diante da inoperância das instituições e da ausência de Estado de Direito, é especialmente difícil hierarquizar os atentados cometidos impunemente contra a razão e contra a lei. A lista é infinda. Afundo destemidamente a ponta dos dedos neste autêntico mar de lama, a expressão me agrada ao ser empregada ao contrário do que costuma se dar. Pinço com o devido cuidado o ministro Gilmar Mendes, com quem José Serra se reúne na sincera busca de afinidades, permito-me imaginar. É do conhecimento de quem respeita a lei, e até do mundo mineral, que Mendes teria de se declarar impedido para julgar o pedido de habeas corpus de seu grande desafeto Luiz Inácio Lula da Silva (leiam mais adiante a coluna de Wálter Fanganiello Maierovitch).
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A súbita presença de Fraga traz à memória a maior bandalheira, a privatização das comunicações no tempo de FHC (Foto: William Volcov/Brazil Photo Press/AFP)
Assim fez o ministro Luiz Edson Fachin, de bom relacionamento com o ex-presidente, ciente do seu papel de magistrado. Sobrou o julgamento para a ministra Rosa Weber, a qual, poderia ter-se declarado impedida por já ter trabalhado com Sergio Moro. Graças a outro ministro a agir corretamente, Teori Zavascki, Moro não está habilitado a realizar seu velho sonho de prender Lula antes da decisão final do colegiado do STF.
Do juiz curitibano tudo é possível esperar, e já fez largamente das suas. Não é acaso que Sergio Moro e os promotores Carlos Fernando dos Santos Lima e Deltan Dallagnol, aquele que prega do púlpito da igreja para convocar à luta os paroquianos, ostentem ter-se formado nos Estados Unidos, onde se especializaram em lavagem de dinheiro à sombra do Departamento de Estado, com a possível contribuição da CIA. De raspão: aos EUA, tão presentes por trás do golpe de 64, não deve interessar um governo disposto a fortalecer o grupo dos BRICS. O juiz Moro se diz apolítico, nem por isso deixa de discursar em tertúlias organizadas por João Doria, candidato de Geraldo Alckmin à Prefeitura de São Paulo, e na Fiesp, envolvida declaradamente na operação golpista sob a liderança de Paulo Skaf.
Causa espanto, muito mais que surpresa, a esmerada sintonia dos lances da manobra. A afinação impecável ao longo da fase do pré-golpe exigiu algo mais que o automatismo dos sentimentos e dos propósitos comuns, de força inegável, mas insuficiente. Os ensaístas do golpe agora conspiram às claras, ninguém se engane, entretanto, há tempo agem na calada da noite e nas pregas obscuras do dia.
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Melhor tarde do que nunca (Foto: Lula Marques/Agência PT)
Somente agora o ex-ministro da Justiça e atual advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, cai na real para perceber o alcance do complô desencadeado pela Lava Jato, a partir de um escândalo verdadeiro, do qual o envolvimento petista representa apenas o derradeiro capítulo. A corrupção na estatal começa com o presidente nomeado pelo ditador Ernesto Geisel, um certo Shigeaki Ueki, disposto a cobrar pedágio sobre cada barril importado ou produzido, e prossegue implacavelmente desde então. De todo modo, na qualidade de maior bandalheira da história do Brasil, nada supera a privatização das Comunicações, que aliás funcionam mal, como tantas coisas mais nas nossas tristes latitudes.
Nesta moldura, figuras como José Serra e Fernando Henrique Cardoso são típicas de uma categoria movida pela ambição desmedida, a justificar desfaçatez e oportunismo. Disseram-se, em algum dia remoto, de esquerda, de fato não acreditam em coisa alguma, a não ser sua vontade de poder. No caso de Serra, o Brasil não o elegeu, foi ele quem elegeu o Brasil, e desta vez vislumbra a si mesmo chamado pelo destino a seguir pelo mesmo caminho percorrido por Fernando Henrique após a queda de Collor.
É tradição tucana bandear-se sempre. Não fosse Mário Covas, FHC aceitaria ser chanceler de Collor. Deteve-o o então futuro governador de São Paulo a partir de 1995, ao se declarar pronto a abandonar o PSDB, partido de fancaria desde quando chegou ao poder.
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Arminio Fraga, com sua expressão de inquisidor espanhol (Foto: Saulo Cruz/Exemplus/COB)
Nas campanhas contra o PT, em 2002, 2006, 2010, 2014, o PSDB assumiu em definitivo o papel de partido da direita, e a mais reacionária possível. Gilmar Mendes, com sua imponente presença, vem do tempo tucano, e não me consta que então tivesse a intenção, por mais vaga, de combater a corrupção, tampouco depois, em época petista, a de desenterrar o passado. Nesta ribalta, Serra disputa o ponto melhor iluminado, e tudo fará para alcançá-lo, escravo da sua obsessão.
E eis quem aparece de repente ao lado do senador? Arminio Fraga, com sua expressão de inquisidor espanhol. Ele me lembra Luiz Carlos Mendonça de Barros, hoje riquíssimo senhor de exposição opaca, ou André Lara Resende, que leva de avião cavalos de montaria para a sua quinta em Portugal, ou para Londres, onde se recomenda cavalgar no Hyde Park. Cavalheiros deste porte e suas façanhas pregressas porventura incomodam o ministro Gilmar Mendes e o juiz Sergio Moro?
Magistrados, policiais, políticos, portam-se como se o novo modelo de golpe estivesse na iminência de atingir o alvo. Quem supõe que seja este o antídoto da crise, engana-se tristemente. Se inédito seria o golpe, inédito seria o dia seguinte. De confusão, de balbúrdia, de caos, com duração por tempo indeterminado. Desejáveis para o cidadão consciente a frustração dos golpistas e o respeito da lei. 



17 março 2016

JUÍZES CORRENDO PARA A GALERA

Não se pode aceitar o vazamento 
de diálogos sem referência a crimes

Fernando Molica, em O Dia
As mais altas instâncias da Justiça brasileira têm a obrigação de impedir a continuação dos abusos que, a pretexto de punir empresários e políticos envolvidos em graves casos de corrupção — tarefa necessária e fundamental —, atropelam direitos dos cidadãos que foram duramente conquistados.
A gravação e a divulgação de conversa entre a presidente da República e um ex-presidente seriam justificáveis apenas diante da perspectiva de crime grave. Mas não se pode aceitar o vazamento de diálogos que não fazem referência a qualquer conluio. A lei que prevê o grampo — 9.296/1996 — determina que “a gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial”. Diz também que a interceptação não será admitida se “a prova puder ser feita por outros meios disponíveis”.
Ausência sem indícios
O próprio juiz Sérgio Moro admitiu que não havia “nenhum indício nos diálogos ou fora deles” de “fato procedido de forma inapropriada e, em alguns casos, sequer há informação se a intenção em influenciar ou obter intervenção chegou a ser efetivada”. O que então justifica a divulgação das conversas? Quem admite este tipo de pedalada não poderá reclamar se tiver conversas íntimas — ou as de seus filhos — divulgadas com autorização da Justiça. Ninguém está livre de ser considerado suspeito, nenhum de nós está livre de ter conversas grampeadas. Mas, desde esta quarta-feira, todos, mesmo que venhamos a ser inocentados, poderemos ter nossa intimidade exposta.
Delações não voluntárias
Quem acha que vale tudo para encarcerar um suspeito não terá o direito de reclamar diante de uma prisão injusta, terá que se calar se for vítima de violência policial. Da mesma forma, prisões preventivas não poderiam ser utilizadas como mecanismo de pressão. A Lei 12.850/2013 define que as colaborações premiadas têm que ser feitas de forma voluntária. Como dizer que é voluntária a opção de alguém que, sem julgamento, é privado da liberdade durante meses? A troca da delação pelo fim da prisão remete ao que ocorria nos porões da ditadura. No processo do Mensalão, ninguém foi preso antes do julgamento — e não se pode falar que réus não foram punidos.
O comportamento atual da Justiça parece destinado a pressionar o governo e a aumentar a tensão entre brasileiros que, de adversários políticos, passaram a se considerar inimigos. A intolerância estimulada também por outros setores da sociedade ameaça a democracia, a convivência entre os que pensam diferente. Não se pode admitir que um processo seja conduzido com o grau de animosidade típico dos linchamentos. Não é razoável que um juiz solte nota de agradecimento a manifestantes — juízes não podem correr para a galera.

(Extraído do TIJOLAÇO, de Fernando Brito)


15 março 2016

PLIM, PLIM

A manipulação de contextos na montagem de notícias


Carlos Castilho, no Observatório da Imprensa



Se há um veículo de comunicação na imprensa brasileira que costuma levar a manipulação da informação ao seu estágio mais sofisticado, este é o principal telejornal de Rede Globo de Televisão. Há muito tempo que o JN reduziu a prioridade pela notícia para enfatizar programas e eventos envolvendo interesses comerciais da empresa , bem como o proselitismo aberto em favor das causas político-financeiras apoiadas pelas Organizações Globo.
No terreno comercial a emissora dedica cada vez mais espaço em seus noticiários para promover novelas, shows musicais, eventos esportivos e iniciativas de seu interesse direto. O espaço para informações sobre problemas comunitários e formas de resolvê-los está sendo substituído por preocupações comerciais da empresa, travestidas de notícia jornalística.
A emissora é suficientemente hábil e inteligente para perceber que é necessário dar atenção aos problemas sociais das comunidades para não perder mais audiência. A questão é que ela trata temas como saúde, moradia, corrupção, segurança e desemprego sob o viés político em vez de buscar o engajamento de seus repórteres e editores com a prática co chamado jornalismo de soluções, onde os profissionais participam da busca de alternativas em vez de se limitarem à pratica das reportagens declaratórias, estilo “ele disse, ela disse”.
Mas é no terreno político que o contexto torna-se mais importante na análise do noticiário “Global”. Um jurista interessado em abrir um processo judicial contra a Globo terá muita dificuldade para enquadrar a emissora nas leis vigentes porque a maior rede de televisão do país tem a necessária expertise para contornar os dispositivos legais.
O que a Globo sabe fazer magistralmente é manipular contextos, como por exemplo, a alocação de tempos para acusação e defesa. Uma denúncia feita por algum delator no processo Lava Jato recebe um detalhamento que toma vários minutos enquanto a defesa merece rápidas e burocráticas menções do tipo “todas as doações foram registradas de acordo com a lei eleitoral”, “não comentamos inquéritos em andamento”, ou “ainda não tivemos acesso aos autos do processo”, sem falar no lacônico “não conseguimos contato com,,,,”.
Discutir a legalidade de tal processo é chover no molhado porque a emissora sempre vai alegar que seguiu o preceito jornalístico da consulta à parte atacada ou agredida. A questão é a diferença de tempo e detalhamento. Na maioria dos casos de divulgação de denúncias por delação premiada não houve da parte dos telejornais da TV Globo a preocupação em apresentar de forma detalhada os argumentos da outra parte. Assim, o telespectador acabou sempre ficando sob o efeito do impacto da denúncia, mesmo aqueles que não acreditaram nela.
Na atual batalha da informação a propósito da continuidade ou não de Dilma Rousseff na Presidência da República, os fatos e dados perderam importância em favor da forma como cada parte os inseriu num contexto que lhe é favorável. A cultura tradicional do jornalismo enfatiza a veracidade e exatidão de fatos e dados, mas ainda não desenvolveu o mesmo grau de especificidade e detalhamento em relação aos procedimentos editoriais sobre como contextualizar corretamente uma noticia. Um dado não existe fora de um contexto. Ele pode ser exato mas manipulado conforme a imagem do copo meio cheio ou meio vazio.
Um editor ou jornalista pode criar um contexto sem alterar dados, fatos ou eventos. O copo é o mesmo, o volume de água idem, mas o profissional pode descrever o fato de maneiras diferentes o que vai induzir o leitor, telespectador ou internauta a desenvolver percepções e opiniões condicionadas pela descrição jornalística.
Outro exemplo da manipulação de contextos foi dado pela TV Globo no caso da hostilização de funcionários da empresa por desafetos políticos na atual conjuntura política no país. A emissora enquadrou os eventos como agressões à liberdade de imprensa quando na realidade eles são uma consequência da polarização político-ideológica na qual a Globo é parte. Atirar ovos e tomates, ou xingar funcionários tem tudo a ver com irritação e divergências políticas, e nada a ver com violações do direito de expressar opiniões.
Os manuais de redação descrevem com exatidão os procedimentos para coleta, edição e preparação de fatos, dados e eventos de interesse jornalístico mas não abordam com o mesmo detalhamento à contextualização, um processo que normalmente acontece na fase da edição onde ocorre a montagem das várias peças componentes de uma noticia.
As redações não são um ambiente democrático onde se discutem posições e atitudes. Prevalece no dia a dia o ritmo industrial de produção. Assim, a cultura política acaba sendo fortemente influenciada por quem comanda a operação jornalística. Os editores organizam a pauta que é passada aos repórteres que vão a campo já com um roteiro preestabelecido e com tempo marcado para regressar. Ao chegar no local da matéria, o repórter não tem tempo de buscar visões diversificadas. Ele se limita a ouvir o protagonista e a parte contrária, sem poder levar em conta que a esmagadora maioria dos fatos, dados e eventos não se resumem a apenas dois lados. Além disso o profissional não tem tempo e, muitas vezes nem preparo teórico, para avaliar se um dado, fato ou evento está corretamente contextualizado.
Como a TV pode distorcer uma notícia
A plataforma televisão é especialmente suscetível a induzir no telespectador percepções descontextualizadas porque o tempo de transmissão de uma notícia é muito curto e porque as imagens geralmente são apresentadas por um único ângulo (copo meio cheio ou meio vazio) simplificando a visão da realidade. A manipulação da imagem como notícia num telejornal provoca no telespectador reações mais emocionais do que as geradas pela leitura de um jornal ou revista, onde a postura é mais analítica, pela própria natureza do veículo ou plataforma de comunicação.
Num mundo marcado pela avalanche diária de informações, onde a complexidade dos fatos, dados e eventos se torna cada vez mais evidente, é muito difícil tomar decisões num curto espaço de tempo, entre sair da redação e voltar com o material recolhido. Tudo isto induz a que o produto final, a informação publicada, seja enviesada por conta da cultura política predominante na redação ou então repassada de forma bruta para o leitor, como é o caso dos indicadores econômicos. O repórter não teve tempo ou não quis questionar o entrevistado e repassa direto para o público uma informação que já veio condicionada pelos interesses e objetivos da fonte.
Esta breve descrição do processo de distorção informativa provocado pela manipulação de contextos permite perceber como é importante tentar identificar o DNA de uma notícia. De mesma forma que você só compra um produto no supermercado depois de checar o prazo de validade e a informação nutricional, uma notícia não pode ser consumida sem uma checagem mínima da sua exatidão, veracidade e contexto. Esta é uma tarefa que o leitor, telespectador, ouvinte ou internauta terá que fazer sozinho porque a maioria dos veículos não disponibiliza este tipo de dado.
É muito improvável uma mudança na política editorial do Jornal Nacional porque são rotinas e valores entranhados há décadas no telejornal que serve de guia para todos os demais noticiários da TV Globo. Por paradoxal que pareça, é mais possível o surgimento de uma nova atitude entre os telespectadores na medida em que eles descobrirem como funciona o enviesamento da informação transmitida por meio da manipulação dos contextos onde está inserida a notícia.
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Carlos Castilho é jornalista e editor do Observatório da Imprensa