25 abril 2016

SEM EVIDÊNCIAS

Bem pior que 64


Mino Carta, na Revista CartaCapital




Um filme intitulado Sem Evidências enfeitou a programação de uma HBO a cabo na noite de domingo 17 de abril de 2016. Mergulhei no enredo ao mudar ao acaso um canal para outro, enquanto a Câmara Federal rasgava impavidamente a Constituição para condenar a presidentaDilma Rousseff sem provas do crime que lhe atribuía.
O filme é uma implacável metáfora do que acabava de acontecer diante dos olhos de milhões em êxtase e uns poucos vexados entre o fígado e a alma. História verdadeira, a do filme, remonta a 1993, quando três crianças de uma cidadezinha do Arkansas são estupradas e assassinadas e as autoridades locais escolhem de antemão os culpados, três jovens tidos como praticantes de rituais satânicos.
O mais velho, de 18 anos, veste-se de preto, tem cabelos compridos, lida com desembaraço com a língua e a ironia e não esconde sua curiosidade por demonologia. Outro, de 17 anos, padece de disfunções mentais. O terceiro, de 16 anos, é tímido e indefeso.
Todos se dizem inocentes, mas os donos do poder tomaram sua irrevogável decisão antes do processo, enfim realizado para sacramentar a decisão adrede tomada. Para tanto a polícia local colabora ativamente e transforma suposições em verdade factual, os promotores cometem irregularidades sem conta na instrução da demanda judicial e contam com um juiz desbragadamente parcial.
Os líderes da comunidade cuidam de elevar a 100 graus a ira popular. Conclusão: o mais velho dos réus é condenado à morte, os outros dois à prisão perpétua. Somente 18 anos depois, a Suprema Corte do Arkansas revê as sentenças, uma delas, à cadeira elétrica ainda não consumada, e recoloca os condenados em liberdade.
Ocorreu-me uma dúvida: quem programou Sem Evidências para o mesmo momento em que, sem evidências, a Câmara Federal condenava a presidenta legítima agiu de caso pensado ou conforme pauta definida com larga antecedência? Se sabia o que fazia, ofereceu a quantos sabem o que fazem uma parábola do episódio a se desenrolar, no mesmo instante, nesta nossa republiqueta tão parecida com uma cidadezinha do Arkansas.
Muitas dúvidas mais me assaltam. E ao sabor de dúvidas teço considerações. E pergunto aos meus atônitos botões se os discursos que ecoaram na Câmara Federal na noite de 17 de abril foram pronunciados, em aterradora maioria, por idiotas ou por hipócritas, excelentes nos dois casos? Ou seria por idiotas hipócritas, magníficos na simbiose? Não espero por resposta, não se faz necessária.
E em relação aos que ouvem e aprovam, em qual categoria catalogá-los? Idiotas ou hipócritas, simplesmente, ou habilitados a mesclar ambas as qualidades negativas? O espetáculo que conseguimos oferecer ao mundo exorbita na prova, esta sim indiscutível, de nossa condição de republiqueta das bananas.
fiesp-protesto
À sombra da Fiesp rudes e ignaros paulistanos esposam as esperanças de quem pretende punir o trabalho
Os autores do golpe, além de imitadores de ações idênticas levadas a cabo em 2006 em Honduras e em 2012 no Paraguai, alegam motivações que confiam cegamente na ignorância e na parvoíce da nação. Pasmem: e acertam, e levam, comoCartaCapital temia na sua edição passada. 
Somos o que somos, e é doloroso aceitar mais esta inegável evidência. Um paiseco do tamanho de um continente, destinado pela natureza para ser um paraíso terrestre, fica entregue à sua própria desgraça, algo assim como um suicídio coletivo.
Com a contribuição decisiva do evangelismo galopante, cada vez mais espalhado, a mostrar sua inevitável aliança à política do poder pelo poder, empenhada em promover boçalidade demente e a enterrar qualquer esperança de democracia.
Não faltarão os céticos, prontos a sustentar que democracia cabe no baú das velharias. Certo é que o golpe de 2016, a mostrar a nossa imaturidade para qualquer tentativa democrática e a fragilidade de quanto foi construída depois da saída do general Figueiredo pela porta dos fundos do Planalto, é muito pior, infinitamente mais assustador, do que o de 1964.
Abril de 64 não traiu a tradição, como sempre desfechado pela casa-grande para sustar no nascedouro um processo capaz de conduzir à demolição da senzala. Teve, paradoxalmente, o condão de excitar alguns espíritos nativos a formas de resistência e cultivar esperanças.
Hoje temos de constatar que ainda pagamos por aquele 1º de abril e que a chamada redemocratização foi uma farsa. Ainda é pouco em comparação com o preço a pagar pelo golpe de abril de 2016. Nada é previsível se não há como se apoiar naquela deplorável tradição. Sobram diversas, assombrosas incógnitas.
Se o assunto é a imprevisibilidade, não cabem incertezas, é óbvio, quanto à composição de um governo Temer. Candidatos óbvios, a rendição à vontade de Tio Sam, genuflexão ao deus mercado em proveito do desequilíbrio social e da punição do trabalho, o loteamento de bens brasileiros, a começar pela entrega do pré-sal às famigeradas Sete Irmãs.
Mas é nesta moldura que a névoa se alastra, bem como as dúvidas. Por exemplo. Como e quando acaba a Lava Jato? Sergio Moro prestou-se ao jogo, mas ainda se prestará? E que desfecho fica reservado para Eduardo Cunha? E para o calendário eleitoral? E o povo sofrerá com a resignação de sempre?
Acabamos de adentrar uma zona de intensa nebulosidade, talvez de inesperadas turbulências, e dentro dela nada nos reporta ao passado. Em uma situação nunca dantes navegada, claro está apenas e tão somente que a crise, muito mais profunda do que simplesmente econômica, mas antes social, política, moral, mental em um país à deriva, não se oferece a mais pálida possibilidade de arrefecimento, muito pelo contrário.
O golpe em andamento contém e expressa um trágico engodo, como o verbo dos conspiradores, dos arautos da casa-grande, dos falsos pastores de almas. O complô visava Lula como candidato em 2018, com o intuito de abater Dilma pelo caminho, e o obstáculo principal por ora permanece. A maior incógnita na crista das ondas é agora a sorte do favorito das próximas eleições. Apontam os barômetros para a instabilidade total. 


11 abril 2016

DISCREPÂNCIAS

A crise é mental


Mino Carta, na Revista CartaCapital



O escândalo chamado Panama Paperscabe com encaixe perfeito entre os resultados da sujeição do mundo ao deus mercado que o papa Francisco mais propriamente definiria como demônio do dinheiro.
Antes de cogitarmos de uma reforma política brasileira, de resto, por ora tão improvável quanto duvidosa, seria altamente recomendável uma reforma do globo terráqueo. De sorte a reverter o processo destinado a enriquecer cada vez mais uns poucos para empobrecer e imbecilizar os demais. Aludo a bilhões de seres ditos humanos.
Um jurista italiano em recente visita ao Brasil, ex-integrante da força-tarefa daOperazione Mani Pulite, Gherardo Colombo, convidado com o transparente propósito de constatar convenientes similitudes entre aquela ação justiceira e a Lava Jato, cuidou de desencantar os anfitriões, de sorte a não merecer maior repercussão na mídia nativa, a do pensamento único a favor do golpe.
A tese central de Colombo, exposta no debate promovido para favorecer Sergio Moro e os promotores curitibanos, é a seguinte: em situações de corrupção desenfreada, a magistratura terá de agir para prender e incriminar quem quer que seja, mas não extirpará o mal se este for da cultura do país. O pecado só será remido pela educação dos graúdos e dos miúdos. Dura lição, que não se coaduna com as pretensões da Lava Jato.
A corrupção é global, como, por exemplo, os Panama Papers comprovam. Nem por isso Moro e sua operação deixam de ser representativos de um país a seu modo único. A Lava Jato presta-se a fornecer munição a uma tentativa de golpe, vale-se de uma polícia disposta a desservir ao Estado para favorecer a manobra em sintonia com a mídia compactamente envolvida no processo.
Atenta contra a lei impavidamente e tanto esquece a origem da corrupção e seus mais atilados praticantes, bem como liquida em um piscar de olhos a possibilidade de qualquerenvolvimento da Mossack.
Desponta a urgência de interrogar os botões: por que será que Moro e cia. enterraram o assunto? Respondem: talvez o peso de nomes graúdos detentores das offshore à margem do canal, nomes retumbantes, tenha aconselhado o súbito recuo, mesmo depois da prisão de cinco suspeitos da Mossack, logo postos em liberdade.
Uma pergunta chama outra: e por quais cargas-d’água as atividades do empresário Fernando Henrique Cardoso e do seu endiabrado herdeiro Paulo Henrique não mereceram eco da mídia nativa? Ora, ora, respondem os botões, FHC é ainda mais invulnerável do que Aquiles, o herói grego de calcanhar indefeso. Nem mesmo Páris, de excelente pontaria, conseguiria abater o ex-presidente sem pontos fracos.
A incerteza do momento precipita mais perguntas. Por que ressurge a proposta da renúncia da presidenta Dilma, formulada tempos atrás pelo acima citado FHC? A Folha de S.Pauloressuscita a ideia como portadora da bandeira a abrir o desfile olímpico. Marcha imponente, a convocar muitos dos titulares da casa-grande, seus aspirantes e fâmulos.
E por que Dilma haveria de renunciar? Nada empurra a tanto o vencedor de uma eleição, menos ainda a lei. Há quem diga: antecipemos as eleições, outubro próximo seria uma boa data. A presidenta reage com louvável ironia: pois então, renunciemos todos em bloco, governo, governadores e congressistas.
A quem aproveita a proposta? Panorama confuso, de névoa do Mar do Norte, na madrugada invernal. Em meio à cerração, aparecem desentendimentos na tripulação do barco golpista. Não vale a pena perder tempo em relação ao patético comportamento de Marina Silva, crente ferrenha das pesquisas, incapaz de perceber que a coisa pega somente nas cercanias do pleito.
Colombo
Este Colombo decepcionou os anfitriões nativos
Permito-me outros exemplos: eleições em outubro não comovem, por motivos diversos, Michel Temer e Aécio Neves. Encantam, porém, por razões insondáveis, Paulo Skaf, aquele que estimula imensa saudade de Antonio Ermírio de Moraes e Olavo Setubal, dois empresários que praticaram a política com outros méritos e válidos atributos. Tampouco está claro se Skaf é empresário.
Algo é certo, soletram os botões: a proposta da renúncia nasce de uma forte dúvida a respeito do desfecho da manobra golpista do impeachment. A tigrada deu para temer, de uns dias para cá, que o complô soçobre no fracasso final.
Retomada a normalidade democrática, e diante de uma crise iniciada no exterior que não tende a arrefecer, a possibilidade de antecipar eleições gerais poderia ser levada em conta, ao cabo de um amplo debate e de uma adequada emenda constitucional, operada pelos poderes previstos em lei.
Antecipação de um ano, para outubro de 2017, quem sabe. Não é por acaso, de todo modo, que a Folha assuma o papel de portador da proposta da renúncia, inequivocamente golpista nas circunstâncias. Diz um caro amigo que o jornalão da família Frias é o mais hipócrita da categoria.
Abriga textos que contradizem a linha do jornal, sem contar a pretensão do ombudsmanfaccioso, para alardear uma isenção desmentida na totalidade dos demais espaços. OEstadão é um vetusto fazendeiro que não consegue enxergar além da cancela das suas terras. O Globo é homem de negócios suspeitos, sem escrúpulos, entregue ao demônio do dinheiro.
Os jornalões, os revistões e os programões abrigam o bestialógico mais grandioso da história do País. No confronto, o Febeapá da Stanislaw Ponte Preta empalidece. O que se lê e se ouve, imediatamente repetido por uma fatia conspícua da sociedade, é algo que não tem similar mundo afora. Trata-se de um besteirol clangoroso que exibe o estágio cultural primitivo de uma nação carente de saúde mental.
Não falta quem escape ao desastre, mas o conjunto da obra é apavorante. Fôssemos diferentes, nos riríamos dos equívocos, dos mal-entendidos, das acusações pueris, e das pretensões descabidas, das ambições idem, dos exibicionismos provincianos, da pompa ridícula, da ostentação grosseira, da vulgaridade geral. O fenômeno apresenta, contudo, uma imponência tão avassaladora a ponto de provocar por parte de quem dispõe de bons olhos, vergonha e desalento.
Perguntam agora meus envergonhados botões: quem haverá, neste Brasil em apuros, capaz de entender que o impeachment não resolve a crise, pelo contrário, a complicaria? E quem se dá conta de que os Panama Papers desvendam o ninho do ovo da serpente da crise que, sem isentar o País, transcende a economia?
Há outra discrepância, ainda mais espantosa, a denunciar ausência de saúde mental, bem como política: enquanto se discute se Dilma cometeu um crime inexistente, decide os destinos do Brasil um notório criminoso chamado Eduardo Cunha