17 outubro 2016

O VERMELHO E O NEGRO

Temer tira a grande imprensa do vermelho


Pablo Antunes, no Observatório da Imprensa



Há anos, cientistas políticos alertam que o pior de um presidencialismo de coalizão é a pulverização de favores a líderes políticos de diversos partidos em um troca-troca que envolve ministérios, secretarias e cargos de chefia em estatais em favor de apoio nas casas parlamentares e no aparelhamento do Estado.
A esse tenebroso cenário se soma uma outra coalizão que em nada respeita o direito do cidadão à informação e à liberdade de expressão. Desde que assumiu a presidência da república, interinamente, depois definitivamente, o governo Michel Temer elevou, sem qualquer constrangimento, as verbas publicitárias para a grande mídia oligárquica que produz as manchetes que informam e desinformam a maior parte da população brasileira. Essas empresas são: as Organizações Globo, as editoras Abril e Caras, os grupos Folha/UOL, Estadão e Band.
Inicialmente, o leitor precisa saber que as verbas publicitárias são um importante ferramenta de qualquer governo para falar com a população. Por meio da propaganda, o povo é informado de campanhas de vacinação, projetos sociais, ações educativas, alterações de regras da previdência social, dos prazos para pagamentos de impostos, entre outros. Portanto, quanto mais municípios forem abrangidos, maior será a população a receber a mensagem.
Contudo, o governo de Michel Temer retoma uma velha prática comum às administrações de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando a regra era dar muito a poucos, reproduzindo uma antiga característica que marca a desigualdade em nossa sociedade. Ao deixar a presidência da república, Fernando Henrique chefiava um governo que pagava cerca de R$ 2,3 bilhões ao ano a 499 veículos de mídia (redes de TV e rádio, jornais, revistas e outros). Com esse número de empresas, as verbas publicitárias se concentravam bastante nos cofres da Globo e da Abril.
A partir de 2003, quando Lula assumiu o comando do governo federal, houve uma maior partilha das verbas usadas para as propagandas, sem que houvesse aumento significativo do total investido. Isso significa que mais receberam menos, ou seja, foi dado um passo em direção a um melhor equilíbrio (que na prática não chegou a se concretizar). Com menos dinheiro recebido do governo, a editora Abril encabeçou uma cruzada contra os governos do PT, mas não foi a única.
Nos dias 14 de junho e 29 de setembro, a Folha publicou textos que tratavam do corte de verbas publicitárias para blogs considerados “pró-PT” por parte do governo Temer, sem citar os valores aumentados das mesmas para Globo, Abril, Caras, Band, além de empresas do Grupo Folha, como o próprio jornal Folha de S. Paulo e o UOL. Essa atitude que fere a liberdade de expressão foi o suficiente para que o jornalista Miguel do Rosário, do blog O Cafezinho, investigasse os números disponibilizados no site da Secom (Secretaria de Comunicação Social ligada à presidência da República).
A generosidade com a mídia oligárquica é indecente porque, ao mesmo tempo,  o governo de Temer se empenha na sedução de parlamentares para obter a aprovação da PEC 241, com o discurso hipócrita de que é necessário cortar despesas para diminuir o endividamento público do Estado, atingindo setores fundamentais da sociedade como a saúde e a educação.
Diferente de um presidente que chega ao poder encabeçando uma chapa eleitoral e expondo o seu plano de governo, que após o pleito vencido organiza uma coalização com as legendas partidárias que o apoiaram, o atual chefe do executivo federal agora paga a conta a quem o ajudou a vencer uma eleição indireta armada em um julgamento político amplamente fomentado por conglomerados de mídia que se sentem muito confortáveis em um desigual seleto clube de poderosas empresas acostumadas com o monopólio da informação.
Enquanto o governo propõe cortes de investimento na saúde pública pelos próximos 20 anos, apenas entre maio e agosto de 2016 (período de Michel Temer na presidência) as Organizações Globo receberam mais de R$ 15,8 milhões.
No mesmo período, enquanto o governo de Temer se esforça para tornar mais duras as regras de aposentadoria, o UOL recebeu mais de R$ 691 mil, a Folha, mais de R$ 426 mil, somando a apenas essas duas empresas do Grupo Folha uma quantia superior a R$ 1,1 milhão.
Ao mesmo tempo em que o governo Temer propõe dificultar o acesso ao seguro-desemprego e sinaliza com a perda de outros direitos trabalhistas, as editoras Caras e Abril recebem mais de R$ 1,3 milhão e R$ 350 mil, respectivamente.
Enquanto uma parte da sociedade se mobiliza para discutir o que representa a PEC 241 para a educação pública nas duas décadas seguintes, o governo Temer paga, com dinheiro público, mais de R$ 3 milhões para o Facebook e mais de R$ 616 mil para o Twitter veicularem propagandas governamentais.
Quase 1,3 milhão em quatro meses
Depois de um governo Dilma Rousseff que parou de pagar publicidade em jornais impressos em 2015, essas empresas voltaram a receber verbas para as suas publicações. Entre maio e agosto de 2016, O Globo recebeu mais de R$ 331 mil; o Estadão, R$ 307 mil; a Folha, R$ 303 mil; o Valor, R$ 347 mil.
São esses mesmos veículos de mídia que tentam convencer o cidadão da necessidade de cortes no orçamento em setores que não representam custos (como a saúde e a educação), mas investimentos no que há de mais importante em uma nação: a sua população. No retrocesso do governo Temer, corremos o risco de vivermos um Estado que governa apenas para o próprio Estado, o que na prática é uma mal disfarçada forma de oligarquia maquiada com algumas pinceladas de democracia a cada dois anos, de eleição a eleição.
Enquanto o governo Temer tira a velha mídia oligárquica do vermelho para conduzir a população mais desassistida a décadas de incertezas em setores fundamentais do bem estar social, importantes pontos para uma verdadeira transformação do país, bem como para recuperação da sua economia, são ignorados por quem prefere que os pobres paguem a conta por contínuas irresponsabilidades fiscais de governos de diferentes vertentes ideológicas, nos quais se incluem a antiga Arena, o PMDB, o PSDB, o PT e os partidos menores que colaboraram com essa situação em nome de uma coalizão, que bem poderia ser traduzida como um troca-troca lesivo aos interesses do povo.
Mesmo com toda a verba publicitária despejada nos cofres da Globo, da Abril, da Folha/UOL, do Estadão, da Band, do Facebook, do Twitter, entre outros, vai ser difícil para Michel Temer explicar as seguintes questões:
  • Com o teto que limita o investimento na educação pelos próximos 20 anos, como as escolas públicas receberão as crianças diagnosticadas com microcefalia e infectadas com o vírus zika, que exigirão um trabalho especial por parte dos educadores?
  • Com o envelhecimento da população brasileira, como o SUS atenderá uma demanda crescente de pacientes com caros tratamentos para doenças crônicas?
  • O governo federal não pensou em propor uma PEC para congelar os salários dos políticos por 20 anos?
  • Ou para extinguir as privilegiadas aposentadorias para políticos e pensões para os dependentes daqueles que serão eleitos a partir de 2018?
  • Ou rever a carga tributária tão agressiva para os pobres e tão branda para os ricos?
  • Ou a taxação de grandes fortunas e de heranças?
Sem respostas a essas perguntas essenciais, nos embasbacamos com a grande mídia fomentando o debate que divide o Brasil em PSDB e PMDB de um lado e PT de outro. Nesse pobre roteiro de bang-bang sem mocinhos, qualquer cidadão mais crítico há de perceber que todos deram provas de incompetência na condução do país.
Concomitantemente, é com dinheiro público que revistas, jornais e redes de televisão produzem textos para definir uma primeira-dama como bela, recatada e do lar, bem como para conduzir debates para convencer o cidadão assalariado de que ele precisa renunciar a direitos para ajudar o Brasil a melhorar a sua situação financeira. Com a distribuição de verbas publicitárias e com uma mídia menos combativa, o governo com sua retórica vazia segue dando maus exemplos.
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Pablo Antunes é psicólogo e escritor. Publica o blog LiteromaQuia



ENTREVISTA: DAVID HARVEY

“Não acredito que Temer e Macri vão ficar no poder por muito tempo”

David Harvey lamenta o recrudescimento conservador no Brasil e no mundo, mas confia que a força do neoliberalismo é passageira


Miguel Martins, na Revista CartaCapital



David Harvey

"No Brasil, há a ascensão oportunista de uma direita neoliberal que se aproveita de um poder efêmero"




Como marxista, o geógrafo britânico David Harvey procura nas contradições do presente uma inspiração para o futuro, mas não tem sido uma tarefa fácil digerir a ascensão global do conservadorismo. “Eu tenho de confessar que tenho me sentido muito pessimista. É tão estranho, muito do que estamos vivendo é completamente louco, insano”, lamenta, para em seguida apegar-se a uma ponta de esperança. “Fico um pouco deprimido, mas acho que as pessoas vão voltar a cair na real.”
A antítese entre o pessimismo no presente e o otimismo quanto ao futuro não é estranha a quem adota a dialética como método. Em seu livro 17 Contradições e o Fim do Capitalismo, lançado recentemente no Brasil pela editora Boitempo, Harvey recupera o projeto de Karl Marx de estudar os mecanismos de reprodução do capital para sugerir alternativas às atuais relações de produção. Em lugar de uma ditadura do proletariado e de um Estado forte, o geógrafo confia no advento de um “humanismo revolucionário” como resposta ao caos social e ecológico do capitalismo.
Em entrevista a CartaCapital, Harvey critica a apresentação da teoria econômica convencional como verdade única, defende novas formas de associação econômica para as esquerdas e assume seu desencanto com a ascensão de lideranças como Mauricio Macri, presidente eleito da Argentina, e Michel Temer, empossado após o traumático impeachment de Dilma Rousseff.
Ele projeta, porém, vida curta para o capital político da dupla. “Nos dois países, há a ascensão oportunista de uma direita neoliberal que se aproveita de um poder efêmero. Não acredito que Temer e Macri vão permanecer no poder por muito tempo. ”
CartaCapital: Em 17 Contradições e o Fim do Capitalismo, o senhor recupera um dos fundamentos do pensamento de Karl Marx: entender o funcionamento do capitalismo como forma de confrontá-lo e de oferecer uma alternativa. A busca por compreender os mecanismos de reprodução do capital tem sido deixada de lado nas últimas décadas?
David Harvey: O tema certamente tem sido negligenciado e deturpado. Frequentemente, a teoria econômica convencional tem sido apresentada como única verdade, e outras teorias são tratadas com desprezo, pois são negativas para os agentes econômicos. Um dos objetos da teoria convencional é tentar naturalizar o capitalismo, como se o modo de produção fosse imutável. Marx apontava que o capitalismo é construído historicamente e está em evolução, logo é possível prevermos uma mudança.  
CCO senhor afirma na introdução do livro que as forças tradicionais da esquerda têm se mostrado incapazes de construir uma oposição sólida ao poder do capital. Como contornar essa fragilidade?DH: Precisamos de uma revolução nas práticas políticas, mas também uma revolução na forma de entendermos a atual situação, nas nossas concepções mentais sobre o mundo, para entendermos o que precisamos fazer e como podemos fazê-lo.
CC: Em entrevista a CartaCapital, Slavoj Zizek defendeu que “a esquerda precisa redescobrir a força do Estado”. O senhor concorda?
DH: Eu não acredito que isso seja prioritário. Marxistas, anarquistas e outros grupos da esquerda têm seus próprios princípios sobre o poder, mas o principal problema é como organizar o trabalho de uma forma associativa, para construir uma economia alternativa ao capitalismo. Para mim, o Estado pode ter um papel relevante nisso, mas o fundamental é como as forças anticapitalistas se organizem entre si para lutar contra esse sistema.
CC: O senhor tem acompanhado os desdobramentos políticos do impeachment de Dilma Rousseff?
DH: Estou tentando acompanhar, suspeito que seja mesmo um golpe. Obviamente, no Brasil um presidente foi efetivado sem ser eleito e enxerga nesta oportunidade no poder uma forma de implantar um programa neoliberal bastante radical. A mesma coisa ocorre na Argentina.
A maior parte dos eleitores de Mauricio Macri não previam que seu governo seria tão neoliberal. Nos dois países, há a ascensão oportunista de uma direita neoliberal que se aproveita de um poder efêmero. Não acredito que Temer ou Macri terão força política por muito tempo. Eles estão usando essa passagem pelo poder para construir uma transformação radical da economia e beneficiar a classe do capital corporativo.  
CC: O governo de Temer tem adotado como prioridade diversas medidas impopulares defendidas por grande parte dos empresários brasileiros, entre elas o congelamento de gastos públicos e as reformas trabalhista e da previdência, propostas que dificilmente seriam aceitas pela população em uma campanha eleitoral. O caso brasileiro indica que o casamento entre capitalismo e democracia está em crise?
DH: Há diversas maneiras de vermos a democracia. O capitalismo sempre esteve preso a uma certa visão de democracia, como nos Estados Unidos, onde o sistema democrático é baseado no poder do dinheiro, e não o da população. A Corte Suprema norte-americana basicamente diz que o gasto de recursos em uma eleição não deve ser limitado, pois é um direito individual e a democracia deve absorver isso. Logo, há diferentes definições de democracia.
Livro Harvey
Harvey: '17 Contradições e o fim do capitalismo'. Boitempo, 297 p., R$ 69
O que estamos vendo ao redor do mundo é a emergência de um movimento autoritário. Recep Erdogan, presidente da Turquia, recentemente afirmou: “a democracia é um ônibus que se abandona quando se chega ao destino”.
O capitalismo enxerga o regime da mesma forma: quando a democracia é conveniente, o capital é democrático, quando não for, ele encontrará formas de contornar e reconfigurar a natureza do processo democrático. 
CC: O senhor costuma defender a transição para uma economia de crescimento zero, mas há uma enorme pressão do mercado durante recessões. O impeachment de Dilma está diretamente relacionado à crise. Como podemos confrontar o establishment econômico que exige crescimento a qualquer custo?DH: Sou uma pessoa relativamente velha, e sempre me disseram durante meus 80 anos que a redistribuição de renda só pode ser atingida por meio do crescimento econômico. Temos feito isso nos últimos 60 ou 70 anos, e não tem funcionado. Então penso que precisamos olhar com mais atenção para a redistribuição. Essa deve ser a prioridade, e não o crescimento.
Não sou um defensor incondicional do crescimento zero, em países menos desenvolvidos, o crescimento ainda é necessário. Mas em países desenvolvidos, o crescimento não precisaria ser prioritário. Grande parte do consumismo nos Estados Unidos é desnecessário e constitui um desperdício. Poderíamos organizar o consumo em uma linha completamente diferente se não tivéssemos essa enorme desigualdade na distribuição, na riqueza e no poder.   
CC: Como o senhor vê a ascensão de discursos nacionalistas, expressos em movimentos como o Brexit no Reino Unido e na candidatura de Donald Trump nos Estados Unidos?
DH: Muitos chamam de nacionalismo, eu chamo de desilusão em relação à globalização. Uma das alternativas é voltar-se à política local e sentir-se mais confortável ao controlar as coisas em seu próprio quintal, mais do que ser controlado pelas forças abstratas da globalização.
O fato de que o nacionalismo sabe cultivar esses valores tem feito ele se tornar um alternativa importante. Não acho que precise ser desta forma. Há alternativas ao capitalismo que deveriam ser desenvolvidas. Neste momento, não há, porém, dúvida de que a versão da direita sobre esse processo é dominante.
CC: O senhor considera esse discurso de desilusão uma ameaça a seu projeto de humanismo revolucionário?
DH: É uma ameaça séria, mas é possível resistir. Como disse, não acredito que Temer e Macri vão permanecer no poder por muito tempo, acredito que as esquerdas são suficientemente organizadas para se livrar deles nos próximos quatro ou cinco anos.
O mesmo deve ser verdade para alguns desses movimentos nacionalistas que estão surgindo. Mesmo que Donald Trump seja eleito, não acredito em sua permanência por muito tempo. Muitas das suas propostas não devem sair do papel, pois o apoio político às mudanças não se alargará a tal ponto.
CC: O senhor defende em seu livro que ainda é possível prever o fim do capitalismo por meio de suas contradições ao defender o humanismo como valor universal. O senhor está otimista em relação ao futuro?DH: Eu tenho de confessar que em certos dias me sinto muito pessimista. É tão estranho, muito do que estamos vivendo é completamente louco, insano. Então fico um pouco surpreso e um pouco deprimido, mas por outro lado eu tendo a achar que as pessoas cairão na real e perceberão que podemos construir um mundo muito, muito melhor.
O que nos está sendo oferecido com essa violência absurda e essa política insana de direita? Por isso, suspeito que, se a esquerda passar a desenvolver ideias e práticas políticas criativas, ela tem um futuro brilhante pela frente.






A ORIGEM DOS ESTADOS AUTORITÁRIOS

Leis de exceção e a vergonha da magistratura

Filme de Costa-Gavras relata a origem comum dos estados autoritários e como se dão as coisas neles: decide-se dar à polícia carta branca para atuar.


Léa Maria Aarão Reis**
Reprodução
Há filmes que de tempos em tempos devem ser revistos. Permanecem sempre novos e universais. São os verdadeiros clássicos. Assim como ocorre com livros aos quais se recomenda várias leituras ao longo da vida, algumas produções políticas do diretor grego Constantin Costa – Gavras, naturalizado francês, de 83 anos, são clássicas. Z (de 1969), A Confissão (1970), Estado de sítio (72) Amém (2002)  e Seção especial de justiça, de 1975.
 
Mesmo na mais frívola irresponsabilidade, com esses filmes fica mais difícil ignorar a origem comum dos estados autoritários e como se dão as coisas neles. Desenha-se, nos filmes de Costa-Gavras, o processo de deterioração do caráter dos protagonistas da vida pública que sucumbe ao sofrer repulsivas torções e distorções, ou diante de pressões e ameaças políticas e policiais - veladas ou não -, ou face à chance, de repente aberta, de legalizar o assalto ao poder. 
 
Section speciale, co-produção França, Itália e Alemanha, oferece uma régia lição sobre o assunto, com os diálogos magistrais do escritor Jorge Semprún, comunista militante do Partido Comunista Francês, de primeira hora da época, assim como foi seu companheiro Costa-Gavras. Ele mostra a naturalidade das tenebrosas transações que ocorrem no mundo sombrio manipulado pelos donos ilegítimos do poder, nas ditaduras e nos estados de exceção – como o que está vigente no Brasil sob ocupação, hoje: um Estado de Exceção dentro do Estado de Direito, como disse há dias o jurista Pedro Serrano.*
 
No caso do filme, o cenário é a França ocupada de Pétain em agosto de 1941 e nela a justiça colaboracionista: ministros germanófilos, juízes hipócritas, promotores e procuradores subservientes,  advogados indiferentes, os carreiristas e os dissimulados; traidores e covardes de todos os tipos e calibres.





 
Para a corja, o fantasma da época foi o ‘’abismo da Espanha’’ quando era preciso evitar, a todo custo, que a França escorregasse para ele. O inimigo eram os anarquistas, comunistas e gaulistas. “Simpatizantes dos  partidos de esquerda,” um procurador conselheiro da corte especial alveja, no filme, à semelhança do ministro da justiça do momento, aqui,  mais preciso ao dizer: eles são ‘‘a escória da terra.”
 
A certeza nesse ambiente era a entrada dos exércitos alemães em Moscou, breve.
 
Enquanto membros do governo francês cultivavam pompas e vaidades na estação de águas de Vichy, em Paris jovens estudantes comunistas resistentes praticavam um atentado, no metrô, e matavam a queima roupa um alto oficial da marinha alemã nazista. A retaliação foi imediata. Para a punição exemplar, os alemães decidem fazer uma centena de reféns na cidade e decapitá-los na Plâce de la Concorde. Mas são dissuadidos e lembrados da guilhotina em praça pública, um dos emblemas da revolução de 1789.
 
A partir do episódio, a narrativa do filme segue desvendando as manobras do submundo jurídico para a criação fulminante (todas as medidas excepcionais devem ser promulgadas com rapidez para deixar atônita a população) de uma corte especial que julgasse resistentes e presumíveis maquis, em um tribunal de exceção com tintas de legalidade - a section speciale. Seis presos seriam escolhidos entre comunistas, judeus ou comunistas judeus acusados de pequenos delitos. Julgados a portas fechadas. Á sua revelia eles estavam previamente condenados à pena de morte.
 
Decide-se dar à polícia carta branca para atuar. A lei de exceção, por ser como tal, era retroativa. ‘’São medidas que servem à situação, mas não à Justiça,’’ reagem alguns juristas renitentes. Em seguida serão convencidos e cooptados. 
 
“Jogamos a Justiça na ilegalidade e a vergonha sobre a magistratura,” bradam. “Não. Trata-se de promover a ‘’salvaguarda nacional’’, replicam os que procuram comprar para si a boa consciência. “Aqui, não se trata de Justiça”, argumentam. “Vamos salvar cem reféns e para isto precisamos de seis condenados à morte.”
 
No início, alguns juízes ensaiam resistir à promulgação da lei antiterrorista que permitirá condenar qualquer um a qualquer hora. 
 
O leitor observa semelhanças? 
 
“A razão de estado deve ditar as decisões jurídicas,’’ justifica a si mesmo um magistrado. E prosseguem a farsa e a burla do julgamento até que um dos réus, (já condenado sem o saber), Sampaix, jornalista do jornal L’Humanité, órgão do Partido Comunista Francês, o PCF, decide mostrar que o rei está nu.”O povo francês julgará este dia,” diz. 
 
Em certo momento das discussões a incerteza bate à porta de um dos procuradores. “E se os alemães atolarem na profunda Rússia e os americanos chegarem às costas da Inglaterra?” Os demais tergiversam.
 
No fim de Seção Especial de Justiça os seis presos escolhidos entre a ‘’escória’’ das esquerdas são executados. Uma legenda informa: “Na Libertação, nenhuma medida séria foi tomada contra os magistrados que participaram dos tribunais de exceção. Eles funcionaram durante toda a ocupação.”
 
Todos aqueles juristas da section speciale, no entanto, foram julgados pelas suas próprias consciências, como anteviu Sampaix, o jornalista do L’Humanité, olhando-os cara a cara, diante da corte de exceção, recusando o embuste da defesa.




* O  jurista Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP lembra que ‘’no caso Lula, o TRF-4 assumiu que está praticando a exceção, que a Lava Jato é um caso excepcional e, portanto, devem ser suspensas as normas gerais no caso, para o juiz atuar como queira. A Lava  Jato não precisa seguir as regras de processos comuns.” ( Rede Brasil Atual).
 
** Jornalista






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